Instituto José Maciel

Na biblioteca do Embaixador

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27/06/2009 - Tribuna do Norte

Michelle Ferret - Repórter     

Era um dia chuvoso. As brasas quentes das fogueiras do dia anterior ainda deixavam no ar um cheiro de saudade, espalhando esperança.  Ao telefone dona Sônia Abbott Galvão deu o sinal verde de que poderíamos chegar em sua casa para conhecer a biblioteca de um dos homens mais raros do Rio Grande do Norte. O tom terno de sua voz emanava um calor semelhante ao das fogueiras. Por fim, fez um único pedido: o escritor Vicente Serejo poderia nos acompanhar?  E assim fomos...

Na chegada, Dona Sônia abriu um sorriso com toda a doçura de quem participou de importantes encontros na literatura e no mundo, e teve a calma de absorver todos os pequenos detalhes lentamente. Sua respiração suave e suas mãos delicadas acariciavam com cuidado a fotografia de Fernando Abbott Galvão, seu amor. Ela com os olhinhos pequenos e lacrimosos guardavam a esperança de revisitá-lo em cada cantinho da casa. Desde as fotografias, aos quadros tão raros quanto os livros, os azulejos portugueses e toda a atmosfera das duas anti-salas que passamos para chegar ao local mais sagrado da casa, a biblioteca de Fernando, ou, do embaixador amante dos livros.

Ela convidou também Clemente Abbott Galvão, irmão de Fernando, um homem tão puro que parece não existir. Sua fala mansa e seu jeito tranquilo de ser conduziu nossa caminhada pela casa acomodando e contextualizando os vestígios de Fernando pelo mundo.  Na entrada, o busto de Eça de Queiroz abençoa o olhar de quem deseja percorrer o universo através dos livros. De bronze e muito bem conservada, a figura  parece ganhar vida ali, um espaço sagrado. E ela parece observar os nossos passos.

 

Vicente Serejo com seu olhar peculiar de cronista, puxava da memória a história e os trejeitos de Fernando. Segundo ele, o embaixador foi um homem que gostava mais de estar entre seus livros do que no mundo e chegou a entregar o salário de um mês inteiro para ter consigo “Preparação para a Morte”, reunindo nove poemas de Manoel Bandeira, seu amigo, a quem Manoel chamava de Intrépido Galvão.

Inquieto e detalhista, Abbott Galvão caminhava pelo mundo em busca de palavras. Entre um país e outro ele garimpava sonhos, poemas e livros raros que hoje preenchem as prateleiras de sua biblioteca - feitas todas com madeiras Carvalho trazidas de Lisboa e medidas milimetricamente pelo próprio colecionador de mundos.

Considerando-se um “Queirosiano” por excelência, ele foi um dos maiores colecionadores da obra de Eça de Queiroz em todo o Brasil. Em  sua biblioteca são reservadas  colunas e prateleiras inteiras preenchidas pelos livros editados originalmente em Portugal — como “José Matias”, “Os Maias”, “Contos”, entre tantos outros também encadernados com couro verde e conservados com todo carinho de um homem que acreditava que a leitura poderia mudar o mundo.

Serejo lembrou também que ele era muito amoroso com seus livros e não gostava de quem pegasse as obras tão bem cuidadas com as mãos sujas ou folheasse as páginas de qualquer maneira. “Ele tinha requinte em tudo. Ficava realmente chateado se alguém pegasse um livro com desdém. Se alguém quisesse muito um livro de sua biblioteca ele preferia comprar e dar de presente do que emprestar. Ele foi um grande homem, um ser humano raro”. Seus dez mil livros divididos entre a biblioteca do apartamento em Natal e na granja em Bonfim, carregam histórias lindas de vida. Para construir seu espaço Fernando mantinha contato com fornecedores na Europa e no Brasil, além de ser amigo próximo de escritores como Guimarães Rosa e Manoel Bandeira.

Uma geração de ilustres leitores e bibliófilos

Filho do embaixador Dr. Solon de Miranda Galvão e de Dona Heloísa Abbott Galvão Fernando passou sua infância, como contou seu  irmão Clemente, já apaixonado pelos livros. Criados numa casa localizada na Avenida Rio Branco tinham como amigo o escritor Câmara Cascudo. Cursou o ginásio em Belo Horizonte e depois partiu para o Rio cursando Direito na Universidade do Brasil. “Durante o tempo em que lá estudava e trabalhava, Fernando mantinha excelentes amizades e já tinha conta na Livraria Atlântica, sempre comprando livros e os mandando encadernar, quando deles gostava”, disse Clemente.

Além de leitor assíduo, Fernando gostava muito de escrever e publicou artigos nos jornais de Natal e de outras partes do Brasil. Foi nomeado no Itamaraty como Terceiro Secretário na época que Getúlio Vargas foi presidente e Café Filho seu vice. “No Itamaraty foi chefe do serviço de informações, compôs a comissão de Estudos de Textos da História do Brasil e após, foi para a ONU em Nova Iorque. Logo depois, numa vinda ao Brasil casou-se com Sônia, com quem teve três filhos, Marcos, Dora e Luíz Bezerra Galvão. Marcos é também embaixador, compondo a terceira geração de embaixadores da família e Luíz é diplomata, atualmente servindo em Miami.

Fernando Foi assessor especial de Relações Públicas em 1968 na Presidência da República e em 69 foi promovido a Ministro de Segunda Classe e nomeado para Zurique como Cônsul Geral. Na década de 80 foi nomeado embaixador, quando transferiu-se para Salvador em pleno período revolucionário em Lisboa.

Depois de receber Comentas e agraciações nacionais, Fernando volta ao Brasil em 1992, já com seus 70 anos e se aposenta como Ministro de Primeira Classe, no quadro especial. Aposentado e com tempo para se deliciar com os livros, Fernando reunia todas as terças-feiras em sua casa - a mesma que conhecemos na última quarta-feira – amigos para discussões sobre história, política e literatura. Ele passa a se dedicar a um livro minucioso publicado em 2007 chamado “O Diário de Jonathas Abbott”, sobre seu trisavô.

Abbott Galvão lançou único livro em toda sua vida

Resultado de uma longa pesquisa sobre seu trisavô, o embaixador Jonathas Abbott, Fernando conseguiu tecer em obra uma das mais importantes pesquisas sobre a origem das palavras. Além de contar a vida de Jonathas, as páginas finais do livro trazia um detalhe especial. “Ele conseguiu explicar todas as palavras que utilizou numa pesquisa quase infindável”, disse Serejo. A obra, lançada em Salvador — sem a presença de Fernando devido a sua dificuldade de locomoção – foi elogiada por vários veículos de comunicação do País, incluindo a Folha de São Paulo e uma página inteira da veja assinada por Roberto Pompeu de Toledo elogiando e comentando o livro. “Ele lançou o livro muito tarde devido a seu perfeccionismo. Não teve tempo de viver os elogios”, comentou Serejo.

O Vazio de um homem grande

A cadeira com encosto de couro vazia e o livro de poemas sobre a morte escrito por Bandeira deixavam no ar um vazio, esse preenchido com os livros e a memória guardada.

Depois de conversarmos sobre Fernando, observar seus livros e perceber que a sua presença ainda muito forte ali, derrete o coração até dos insensíveis. A cada lembrança, a cada caso engraçado lembrado por Serejo e por Clemente e a reclamação de Dona Sônia por não ter tanta memória, deixaram no ar uma frase que todo mundo se calou depois, “O vazio aqui ficou tão grande”, dizia  Dona Sônia repetidas vezes. E Serejo completou, “Esses homens raros são meio loucos. Eles carregam uma sabedoria e uma paixão tão grande pelo  mundo imaginário dos livros que se tornam gigantes”.

Fernando faleceu repentinamente em 15 de abril deste ano e sua biblioteca está agora nas mãos dos seus filhos. Se existirá doação para museus ou órgãos públicos ainda não se sabe. O certo é que Fernando deixou no mundo uma semente, a paixão por um dos instrumentos que se torna a cada dia mais raro nesse mundo de Deus, os livros.

 

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