Instituto José Maciel

Uma tarde com Fernando Abbott Galvão

E-mail Imprimir PDF

Escrito por: Dr. Olimpio Maciel 

Um grande homem se distingue não unicamente pelas grandes coisas de que se mostra capaz, mas sim pelos pequenos gestos, que em suas mãos ganham distinção e grandeza. A vida do embaixador Fernando Abbott Galvão, cujo ciclo se fechou no dia 15 de abril passado, encerra essa lição de simplicidade e elegância quando, sempre no final da tarde de cada terça-feira, recebia os amigos para não apenas trocar amabilidades em torno de uma chávena de chá, acompanhada de algumas madalenas proustianas, mas sobretudo para exercer o civilizado rito da convivência, da conversação no mais elevado nível, a qual era propiciada pelo aconchego de sua sala de estar improvisada em salão artístico-literário.

Políticos, intelectuais, escritores, familiares e amigos chegados costumavam atender ao chamado do embaixador para um happy hour capaz de dar ares aristocráticos a uma trivial terça-feira. Algumas vezes a solicitude do gesto de Fernando Abbott Galvão nos retirou de uma rotina habitualmente estressante, de médico, para nos dar acolhida no seleto círculo dos seus convidados.

Numa dessas vezes, fomos objeto de sua generosidade mais simpática, quando recebemos de suas mãos uma coleção de livros de autoria do médico norte-rio-grandense Januário Cicco, bem como uma coleção de fotos enfocando a Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia, onde o meu pai estudou. Nessa ocasião, éramos presidente do Memorial de Medicina do Rio Grande do Norte. Interpretei o gesto como uma deferência para com a classe médica norte-rio-grandense, cujas raízes remontam ao seu trisavô Jonathas Abbott , médico – sobre quem escreveu o livro O diário de Jonathas Abbott –, e a seu pai, Sólon de Miranda Galvão. Essa tradição médica da família do embaixador era tão arraigada que o levou, por um momento, a namorar a medicina, só a trocando pelas letras jurídicas após demorados testes vocacionais a que se submeteu na juventude e cujo diagnóstico estoicamente acatou.

Aluno acima da média, Fernando Abbott Galvão se distinguiu no curso de direito da Faculdade Nacional de Direito da Universidade do Brasil, no Rio de Janeiro. Ao voltar para Natal, não teve dificuldade em conseguir uma colocação no exigente Colégio Santo Antônio. Ali lecionou Português, Literatura Brasileira e Literatura Portuguesa no início da década de 1950. Em 1951 assumiu a Assembléia Estadual do Rio Grande do Norte, por mandato popular, e ainda trabalhou como Assistente Jurídico no Instituto de Pensão e Aposentadoria do Estado do Rio de Janeiro.

 Presidente Vargas e Abbott Galvão

O ponto de mutação em sua vida, após o qual nada voltaria a ser como antes, provinciano e previsível, foi sua aprovação em primeiro lugar no concurso de ingresso nos quadros do Instituto Rio Branco, no Rio de Janeiro, em 1952, fato que descortinou à sua frente uma carreira diplomática brilhante que culminaria, em 1987, com a promoção para Ministro de Primeira Classe no Quadro Especial do Itamaraty. Foi nesse posto que encerrou sua exemplar trajetória pelas representações diplomáticas do Brasil no exterior, em 1992.

Desde então, voltou-se exclusivamente para a família e os amigos. E que lugar mais indicado para receber a ambos senão os meetings das terças-feiras? Recordo ainda a expressão de contentamento com que o embaixador Abbot Galvão nos recebia nesses encontros e, em seguida, apresentava aos novos sua biblioteca, indicando o conteúdo de cada estante, onde se poderia encontrar desde a requintada Pleyade francesa, ali completa, até os estudos mais recentes sobre o escritor português Eça de Queirós, aliás, uma de suas especialidades literárias. Quando provocado, ele era capaz de discorrer sobre qualquer obra, temática ou personagem do vasto universo do autor de Os Maias. A coleção de objetos de arte que reunira como meticuloso colecionador eram outras pérolas do seu cenáculo.

Muitos outros assuntos animavam os saraus literários das terças-feiras na casa do embaixador Abbott Galvão, cuja memória paisagística e fisionômica o permitia descrever lugares e pessoas os mais longínquos, sempre que um fato recente o sugerisse. Mas era evidente que as questões ligadas à diplomacia brasileira de ontem e de hoje eram especialmente caras ao diplomata natalense que ganhou o mundo em missões as mais variadas, sempre na defesa dos interesses brasileiros e da ordem jurídica internacional.

O fato de ter auferido dezenas de comendas, medalhas e condecorações em suas funções diplomáticas, tanto no Brasil quanto no estrangeiro, indicam que sua carreira sempre prosseguiu em ritmo ascensional, acumulando experiências e assumindo novas responsabilidades compatíveis com sua crescente qualificação e competência.

A nosso ver, ele soube com distinção e galhardia servir dignamente ao seu país, à sua terra e aos seus amigos. Por dever de justiça merece, portanto, que o chamemos de um homem exemplar. Essa honraria, cremos, o coloca acima das condecorações e medalhas que amealhou em consequência do seu alto valor profissional, porque faz sobressair o valor mais íntimo do homem: sua essência moral.

 
 Natal/RN - Brasil,