Não gostaria que o seu centenário, hoje transcorrido, fosse uma data esquecida. Não seria justo para alguém como você. Para com quem ousou sonhar ainda que, diante de seus limites, exigisse seriedade, equilÃbrio, sabedoria e fidelidade. Sonhou em superar a agudeza da carência material e cultural da vida de filho de agricultor no interior de Pernambuco para se tornar médico. Sem recurso, pedia emprestados os livros de medicina aos colegas para copiá-los durante o fim de semana e estudar. Realizou o sonho. Era um daqueles que sabiam sentar junto ao leito do paciente com tempo para ouvi-lo, tomar suas dores e animá-lo em direção à cura ou ao menor sofrimento possÃvel.
Sempre acreditou no bem. Não simplesmente para evitar o mal, mas pela convicção humanista de se sentir entre irmãos. Assim, chamando de irmão, convidava a sentar à mesa os que batiam à porta pedindo comida. E com a mesma palavra, o mesmo tratamento, nos mandava cumprimentar o novo comensal.
Chegado o tempo da retirada das salas de cirurgia continuou sua atividade. Atendia em casa, de graça, portas abertas para os necessitados, sobretudo os pobres de Mãe LuÃza, até que sua visão passou a ser apenas um arquivo de imagens arquivadas na memória.
Não foi o suficiente para o impedir de seu ideal. Fez do carro de ano tão passado o transporte dos que careciam de assistência e do motorista um assistente fiel. Isso até o dia em que eu mesmo fui portador da mensagem do diretor de um hospital público para onde mandava seus 'pacientes': Não podiam mais continuar a receber sua gente, pois alterava a rotina do hospital. Até lembro sua emoção, sua tristeza com racionalidade da medicina nos tempos atuais.
O verdadeiro sacerdócio em que se transformou sua profissão jamais foi escusa para não procurar atingir o máximo de destreza. Estudava a melhor forma de cirurgiar, com o pensamento voltado à conjugação da técnica cirúrgica e a melhor recuperação do paciente. Sempre soube que sua missão era a de restituir a alegria de viver a quem cuja saúde lhe fora confiada.
Você sempre acreditou na formação intelectual humanista dos médicos. Leu de tudo. Correspondeu-se com escritores das mais diversas áreas. A pequena mas seleta e variada biblioteca foi testemunha dos quantos lhe enviavam suas obras com as mais afetuosas dedicatórias. O saber não lhe era estanque. Fez enormes e injustos esforços para continuar em sintonia com o mundo. Sofri ao lhe ver com lupas enormes garimpando letras neste jornal como um mineiro de pouca sorte e muita paciência.
Partiu sem tempo para a despedida. Sua lição permanece. Que as vitórias fáceis e o sucesso imerecido de outrem jamais impressionem o seu espÃrito, pois cumpriu seu destino com a convicção de que a grandeza da missão agasalhou a paz em sua consciência. Profundamente emocionado lhe dirijo esta pequena mensagem com o desejo de merecer reencontrar-lhe um dia.
Â
Tribuna do Norte - Clóvis Travassos Sarinho Filho - Médico
< Anterior | Próximo > |
---|