Instituto José Maciel

Praca Pedro Velho

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Não sei olhar a Praça Pedro Velho com os olhos de homem feito. Saltam lá de dentro, como se vivessem escondidos em algum lugar da alma, os olhos do menino refazendo aquele território encantado da última infância. Onde a pracinha que aprendi a ver quando cheguei aqui, há mais de meio século? Os fícus nas esculturas nascidas das mãos dos jardineiros, os tanques onde moravam as tartarugas, o coreto elevado e os bancos desenhando as curvas verdes das suas pequenas alamedas?

Naquele tempo, graças a Deus, não era cívica. Era só Pedro Velho. Homenagem sincera ao nosso

proclamador da república.  Com seus olhos de bronze como se ainda olhassem a velha mata de Petrópolis, onde viveu, passeou a cavalo, foi o visitante ilustre do Principado do Tirol do amigo Coronel Cascudo, pai de Cascudinho. Com aquela dama e seu vestido longo que não cansa nunca de estender o braço e oferecer um buquê de flores. Como se a vida estive parado num instante mágico.

Um imenso território humano se limitava, na sua geografia íntima, com as Avenidas Prudente de Morais e Floriano Peixoto, entre a Potengi e a Trairi, como se fossem reios correndo para a Ribeira. Não este lugar de hoje, tão comum em tudo, cercado de escritórios, prédios públicos, consultórios e repartições. Ali viviam velhas famílias da cidade e, na esquina, com suas varandas suspensas sobre uns porões misteriosos, espiava a praça a bela casa de Cícero de Souza, hoje desaparecida, onde fizeram com a pedra e a cal da insensibilidade um hotel com nome em inglês.

 

Nesse território moravam personagens, muitos deles já encantados, como Wandecy Albanez Ferreira Veras, uma lua da infância. Com seu luxuoso Sinca Chambord, era juíza de menores, mãe de Themis e Marco Polo – ela bonita, a flutuar de patins naqueles chãos ladrilhados da praça, e ele um menino ingênuo e peralta, meus amigos até hoje. Seu vizinho era o velho Ismael Wanderley – seu filho, com o mesmo nome, foi depois deputado – que fazia exercícios de alterofilia no seu jardim suspenso e acabava o futebol dos meninos furando as bolas de borracha que caíam no seu quintal.

Na esquina da Nilo Peçanha com a Potengi, onde hoje é uma clínica, morava o doutor José Maciel. Um médico educado, com sua sisudez por trás dos óculos, e de onde fugia uma histórica discreta de que na juventude sonhara com o socialismo. Era casado com D. Zuleide, e tinham quatro filhos: Olímpio, Nadja, Cleide e Maciel Filho. Vizinho, onde hoje é a Aliança Francesa, era a casa do Coronel João Madeiros, de Jardim do Seridó. Pai de Neide, a moça bonita e educada que namorava Olímpio Maciel, o acadêmico de medicina, e com quem casaria, numa história de amor que teve tudo, até aquele final das fábulas, com um felizes para sempre.

Logo depois, numa casa de fachada ornada com arabescos em alto revelo, morava o sempre austero professor Ulisses de Góis que saia todas as manhãs de paletó e gravata, no seu carro com motorista. Casas que eram verdadeiros palacetes de janelas abertas para a praça cercada de velhas árvores desenhando sombras no chão calmo de um tempo feito de vidas quietas, bem comportadas como a vida das famílias de lá. Com os seus fotógrafos registrando os dias em doces instantâneos.

Nos tanques de água doce – eram dois? Nem sei mais... – viviam umas tartarugas velhas e grandes que instigavam em nós meninos o exercício da transgressão como uma forma de vê-las à flor da água escura alimentando com pipocas, quando vigia não estava tão por perto. Elas emergiam, abocanhava uma a uma as pipocas que boiavam, e desapareciam. De repente, lá vinha o vigia de cassetete e apitando. E os meninos corriam em todas as direções num falso medo, alegre e ruidoso.

Praça onde o cliclista Kid Lima passou noites e noites andando na sua bicicleta cromada ao redor do coreto, sem parar nunca, num heroísmo que até os mais velhos desconfiavam e acordavam de madrugada para vê-lo pedalando. Das empregadinhas nos seus namoros ardentes que espiávamos de longe, como um filme proibido. Das moças e rapazes que vinham das aulas noturnas do Atheneu e passavam em revoada, escondendo nas sombras do Jardim adormecido o pudor dos primeiros beijos.

Um dia a praça começou a ficar menor. O prefeito Djalma Maranhão anunciou a construção do Palácio dos Esportes. Com sua pobre mania de construir sobre praças como se fosse um agrado popular, destruiu o bar em forma de avião que parecia, há anos e anos, pousado ali. As marretas subiam e desciam nas mãos dos trabalhadores, e o avião foi sumindo, sumindo, até desaparecer. E o Palácio dos Esportes subindo, subindo, como um colosso com seus arcos grandes e monumentais.

Quando os militares espetaram e tomaram o poder com as pontas das suas baionetas, foi pior: a Praça Pedro Velho virou Praça Cívica, sem herói nenhum na sua história. Mudaram o pedestal do seu patrono por um feito de mármore cinzento e cemiterial, e arrastaram para mais próximo da Av. Prudente de Morais. Obrigando a que seus olhos de bronze vejam todos os anos os desfiles militares que até hoje reverenciam a pátria. Como se a independência fosse uma data e a liberdade um fuzil.

E a praça, a pracinha da infância, território das mais humanas recordações, esta desapareceu.

Lua grande de fevereiro de 2012
Vicente Serejo

 
 Natal/RN - Brasil,