Instituto José Maciel

Arte, protesto e sentimento íntimo

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O sobrescrito pede licença aos seus leitores para entrar num foro íntimo: como alguns sabem, meus irmãos, minha mãe e eu perdemos na semana que passou alguém muito especial, impossível de ser descrito em poucas palavras: meu pai, Jessé Dantas Cavalcanti. Como a maioria de nós, Jessé não era nenhuma personalidade dos mundos efêmeros da política, dos esportes, ou da cultura. Mas como todos nós – e como todos aqueles caros a nós – era alguém de importância vital para as pequenas e grandes coisas de que é feito nosso cotidiano. Junto à tristeza de sua partida uniu-se o apoio e a solidariedade de amigos, parentes e até mesmo desconhecidos – a quem aproveito, em nome de minha família, para, sinceramente , agradecer.

Entre os muitos depoimentos, verbais ou escritos, um, em especial, me chamou atenção – o do médico,  artista e escritos Iaperi Araújo – especialmente pelo seu conteúdo, íntimo, e ao mesmo tempo revelador não apenas da personalidade do meu pai mas também de um pequeno episódio da história cultural deste Ryo Grande. É o que segue.

Mário:
Estava na praia para descansar durante o carnaval quando o li no jornal a notícia da morte do Dr. Jessé. Não sabia-o seu pai, mas desejo expressar além da minha tristeza pela sua morte, prestar um breve depoimento sobre nossa amizade.

Em 1966, o governo do estado fez realizar um Salão de Artes no Museu do Sobradinho. Com premiação. Alguns artistas novos e que já buscavam caminhos alternativos para suas expressões artísticas, até por conta da vanguarda que invadia o mundo e, aqui, como protesto contra a ditadura militar que se instalava, não concordaram com os critérios de seleção e premiação.

Um grupo resolveu fazer um Salão Alternativo e de Vanguarda, e lançou o Esquema Kaos, abrigando-o na Galeria de Artes da Prefeitura, na Praça André Albuquerque. Dr. Jessé era secretário da educação, que na época acumulava a Cultura e mesmo com as ameaças e opiniões contrárias nos deu todo o apoio. Ali, se abrigaram os pops os alternativos, os loucos varridos e toda a sorte de experimentalistas. Eu expus uma escultura em gesso da cabeça de São Sebastião, numa caixa de madeira envolta em aniagem, transpassada por uma flecha. Olhe que eu havia sido premiado em gravura no Salão do Sobradinho. No Kaos, estavam expostos abstratos e experimentalistas com caixas de papelão, embalagens, restos do lixo cultural e da sociedade. Uma barafunda para chocar realmente a inteligentzia potiguar.

Nosso Kaos foi mais visitado que o Salão do Sobradinho. Dr. Jessé inclusive patrocinou um troféu para o melhor trabalho do Kaos, um entalhe em madeira com um aplique em outro da figura do galo, símbolo cultural da cidade. Um troféu tradicional para uma arte nem tanto.

Mas a coisa não foi pra frente, pois na própria vernissage a polícia veio e fechou. Queriam quebrar e arrebentar, mas a interferência do Prof. Jessé permitiu que, pelo menos por um dia, a exposição ficasse aberta ao público. Coisas dos tradicionalistas contrariados ou da mão pesada da ditadura.

Fica o registro do gesto do Prof. Jessé que acolheu a alucinação de jovens contrariados, abrindo a Galeria para o que achávamos que era arte e protesto.

Que Deus o acolha com a mesma solidariedade com que nos acolheu.

Iaperi Araújo

 
 Natal/RN - Brasil,