Januário Cicco

Natal, 1° de novembro de 1952. Ás 6h 30min da tarde, de forma inesperada, ainda que portador de uma enfermidade cardíaca (um “sopro”, auscultado pelo próprio paciente), ele viera a óbito.minutos antes, na Av. Duque de Caxias (antiga Rua Schet), n° 158, local onde residia e clinicava, fazia um último pedido a seu amigo Onofre Lopes: - “Meu filho, não deixe minha obra se acabar.” Das sete da manhã do dia seguinte às 14h, seu corpo fora velado na Capela do então Hospital Miguel Couto, sendo daí transladado, em grande comboio, para o cemitério do Alecrim, passando antes pela Maternidade, e recebendo aí a homenagem do amigo e colega de trabalho Dr. Heriberto Bezerra, responsável pela seção de Pediatria. Os jornais de 2 de novembro contabilizavam uma multidão a pé, composta de admiradores, curiosos e transeuntes diversos, além de cerca de 140 automóveis, com autoridades políticas e culturais do Estado, e 6 ônibus, carreta que aumentava progressivamente conforme se realizava o trajeto em direção ao campo santo do Alecrim. À beira do túmulo discursaram personalidades, como o governador Sílvio Pedroza, o presidente da Sociedade de Assistência Hospitalar, Onofre Lopes e o imortal Manuel Rodrigues de Melo, da Academia Norte-rio-grandense de Letras.
Mas, afinal, de quem estamos falando? Que vulto potiguar mereceria tamanha homenagem de uma cidade? Trata-se do médico mipibuense Januário Cicco. Nascido em 30 de abril 1881, e filho do migrante italiano Vicente de Cicco, de Sapri, e de Ana de Albuquerque, de São José de Mipibú, Januário Cicco fez seus primeiros estudos com o professor Luís Militão. Quando sua família transferiu-se para Natal, passou a estudar com professores particulares, indo depois fazer o Curso de Humanidades na Paraíba, tendo lá a carreira sacerdotal. Desistiu do sacerdócio, retornando a Natal para cursar o secundário no Atheneu Norte-rio-grandense, finalizando-o aos 18 anos. Decidiu, então, fazer o curso de Medicina na Faculdade de Medicina da Bahia, residindo lá em uma “república”.
Doutorando-se em 1906, com a tese Do destino dos cadáveres, que defendia como medida sanitária a cremação dos corpos, idéia típica do positivismo médico da época, Januário Cicco transfere-se para Natal e começa a clinicar como otorrinolaringologista na então Rua Sachet. Dos três anos que mediam seu trabalho na clinica particular e o empreendimento do Hospital Juvino Barreto (1909), pouco se sabe. Em seu livro Memórias de um Médico de província, de 1928, ele discute longamente sobre a falta de “ética médica” de alguns profissionais da arte de Asclépio, que costumavam “tomar” os pacientes de seus colegas de profissão. Reclamava igualmente do tratamento que recebia da população. No capítulo O cliente pobre, Januário conta-nos o caso de uma intervenção cirúrgica sua malsucedida, que resultou na morte de seu paciente. A notícia se espalhou e, no dia seguinte, ao passar pelas ruas, já era apontado como o responsável pela morte de seu paciente. E isto porque dias antes houvera salvo um doente com forte hemorragia!
Como fruto dessa experiência clínica na cidade, Januário percebeu a importância de se construir em Natal um espaço médico que atendesse às necessidades da população mais pobre, sugerindo tal iniciativa ao governador Alberto Maranhão, que o atendeu prontamente mediante a doação de um terreno no alto do Monte Petrópolis. A tarefa, todavia, era hercúlea. A nossa única experiência no modelo hospitalar fora um completo fracasso: o Hospital de Caridade, criado em 1855, era, no dizer de Onofre Lopez, “um depósito de doentes em torturante promiscuidade: loucos, ulcerados, e tudo que a nosologia da época apresentasse. Um novo inferno de Dante. Os doentes internavam-se para morrer”. Fora fechado definitivamente por Tavares de Lyra, em 1906, por ser considerado inservível. Nem o famoso médico Oswaldo Cruz, quando esteve em Natal, em 1905,teve qualquer interesse pelo hospital (levou consigo somente duas garoupas e um mosquito envidrado!).
Assim, Januário teve de mobilizar todas as suas forças para o empreendimento, pois não poderia contar muito com o estado. Trabalhou praticamente só com as irmãs Filhas de Sant’anna, que lhe secundaram nos trabalhos possíveis. Somente em 1917, o estado lhe concedeu um “prático” de nome José Lucas do Nascimento, que ficou conhecido na época como “O Enfermeiro”. No livro do Movimento Hospitalar, que registrava a entrada e saída dos pacientes, entre 1909 e 1926, só havia a assinatura de Januário Cicco, trabalhador incansável, de múltiplas especialidades, mas solitário, José Tavares, que conviveu com Januário no hospital, tinha-o em conta como grande cirurgião, chegando a tirar de uma mulher de 18 anos, em 1913, um enorme cisto de ovário, fato que lhe rendera grande fama.
Homem sempre enérgico e ético, nem mesmo essa situação de precariedade dobrava seu espírito. José de Anchieta, na revista História: fatos e fotos, relata-nos um encontro, em dezembro de 1937, de dois recém formados de medicina que foram pedir emprego no Hospital Onofre Lopes, certos que, com as ligações políticas que tinha com ex-professores de Januário na Bahia, teriam trabalho garantido. Depois de horas de conversa regadas ao clássico cafezinho de hospital, Januário saiu-se com esta lacônica resposta: “- Foi um prazer conhecê-los, quando quiserem, voltem ao hospital para conversar e tomar um cafezinho.” Todo o trajeto que Januário percorria quando saia da atual Duque de Caxias para o hospital era feito a cavalo, num alazão, atravessando um verdadeiro matagal, como nos revelam algumas fotos dos idos de 1940. E ainda ia clinicar, uma vez por semana, em Macaíba!
Sua preocupação com a saúde pública do estado estendeu-se para além do hospital. Seus sonhos levaram-no a criar a Maternidade Escola Januário Cicco, que surgiu graças a freqüentes campanhas públicas, com promoções, quermesses, festas, desfiles, rifas e sorteios para arrecadar dinheiro para a construção, iniciada em 1932 e concluída no começo de 1940. Ajudou a fundar a Faculdade de Farmácia (1922) e a Escola de Enfermagem (1924), sendo presidente da primeira e médico-professor da segunda, na cadeira de Toxicologia. Este período fora bastante difícil para Januário, pois, em 1937, ele perdera seus dois grandes amores: sua filha, Yvette Cicco, e sua esposa, Isabel Simões, tudo num intervalo trágico de apenas 7 meses. Com este episódio funesto, Januário voltou-se completamente para seu trabalho, dedicando-se integralmente à medicina, tornando-se taciturno e abandonando sua antiga vida social.
Toda essa intensa atividade médica, todavia, não lhe afastou de outra grande paixão: as letras. Escreveu importantes obras científicas e literárias, como O destino dos cadáveres perante a higiene e a medicina legal (1906), Como se higienizaria Natal (1920), Memórias de um médico de província (1928) e Eutanásia (1937). Este último, uma novela literária, que possibilitou sua entrada na Academia Norte-rio-grandense de Letras (ANL), Januário simula um diálogo entre dois médicos, que discutem a profundamente os argumentos favoráveis e contrários à eutanásia, discussão bastante atual entre nós. E, como se não bastasse, ainda assinava e lia regularmente um dos maiores periódicos médicos do mundo, a revista Presse Médicale e a revista literária L’illustrations.
Em 1° de novembro de 1952, às 6h30min da tarde, vítima de um ataque cardíaco, encantou-se o fundador da saúde pública no RN. Seu legado para a medicina potiguar é incalculável. A nossa homenagem a ele, por sua vez, pode ser contada nos dedos: um nome de maternidade, um busto em um topônimo municipal, hoje rebatizado. No seu trabalho, lembrou-se de todos; mas muitos se esqueceram dele. Acho que a precariedade do nosso sistema de saúde também afetou a nossa memória...
Escrito por Rodrigo Otávio da Silva
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