Instituto José Maciel

Calou a voz da resitência

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Calou a voz da resistência

               CABO-VERDIANO por nascença e potiguar por escolha. A firmeza de caráter e o jeito decidido são as características mais lembradas pelas pessoas que conviveram com o escritor e poeta Luís Romano de Madeira Melo, que morreu ontem por volta do meio-dia. Aos 87 anos de idade e há quase meio século residindo no Rio Grande do Norte, o intelectual considerado como um dos maiores expoentes da literatura de Cabo Verde estava internado na UTI de um hospital de Natal desde o último sábado.
               De acordo com a família do escritor, a morte ocorreu em função de complicações decorrentes de uma pneumonia e edema pulmonar, que findaram por agravar o seu já precário estado de saúde. A esposa de Luís Romano, a também cabo-verdiana Maria José de Melo Rodrigues, muito debilitada e abalada, foi hospitalizada na quinta feira e até ontem continuava internada.
               O autor do livro “Famintos”, clássico da literatura Cabo-verdiana e um dos mais potentes gritos de denuncia contra a ditadura salazarista, vinha enfrentando diversos males que acometiam sua saúde há pelo menos 20 anos. Luís Romano lutou conta diabetes, câncer de próstata, e de pele, sofreu um infarto no miocárdio e um AVC, que comprometeu uma das mãos ainda assim, manteve-se lúcido e até 2008 tinha o costume de ocupar-se com a escrita. Todas as manhãs ele se recolhia ao escritório e redigia cartas a amigos na maquina de escrever – Romano nunca aderiu ao computador.
               Nos últimos 10 anos a saúde de Romano e de sua esposa começou a piorar. A filha mais velha do casal, Maria Teresa de Melo Rodrigues, residia em Portugal na época e veio morar com os pais. Um acompanhante foi contratado para ajudar o escritor, nos últimos três anos, na realização de suas atividades cotidianas – as pernas amputadas e a idade avançada dificultavam a vida dele.
               “Apesar de todas as dificuldades, ele nunca arrefeceu. Luís Romano possuía uma fortaleza interior e resistiu a muita coisa. A vida dele daria um livro”, afirma o amigo e jornalista Sanderson Negreiros. Ele recebeu a noticia do falecimento com surpresa e comoção. Relembrou virtudes do escritor. “Ele foi um antropólogo que falou muito de Cabo Verde. Acho que faltou reconhecimento ao trabalho dele – tanto por parte das novas gerações quanto das velhas. O ultimo lançamento do livro dele contou com a presença de poucos natalenses. A maior parte do pessoal veio de fora”, lamenta.

               No final da tarde de ontem, o presidente de Cabo Verde, Pedro Pires, enviou uma mensagem de condolências à família do escritor. A mensagem foi reproduzida na integra por um dos maiores veículos do país. “Luís Romano ficará guardado na memória coletiva dos cabo-verdianos como um dos que melhor souberam traduzir o drama de um povo em luta permanente para sua sobrevivência, num ambiente agreste, seco, de dominação e adversidades diversas, mas, mesmo assim, repleto de esperança e confiança no futuro”, afirmou o presidente.
               Foi justamente a obra literária “Famintos” que forçou Luís Romano a deixar a pátria em que nascera, um pequeno pais da África. O livro começou a ser escrito na década de 40 e seu nome sequer podia ser mencionado, dada a duras censuras impostas pela ditadura contra o povo. No ano de 1947, o escritor fugiu para Argel e Paris, estabeleceu-se no Marrocos como técnico de salinas e no inicio da década de 60 partiu para o Brasil. Começou a trabalhar para a família Matarazzo - naquela época uma das mais ricas do pais – nas salinas de Macau, município do interior do RN.
               Depois que os Matarazzo entraram em decadência, Luís Romano ainda esteve durante um curto período em Cabo Verde, depois do fim da ditadura, e voltou para fixar residência em Natal. Na capital potiguar, foi amigo de personagens ilustres da cultura local, como Câmara Cascudo, Newton Navarro, Edgar Barbosa, Onofre Lopes, entre outros. Foi nomeado cônsul geral de Cabo Verde no Brasil após a queda da ditadura e sempre foi um grande defensor dos dialetos crioulos cabo-verdianos – que ele acreditava serem a verdadeira língua oficial do país.
               “Meu pai era um homem severo mais eu sou grata por isso até hoje, aprendi com ele a ser decidida. Já havia me preparado para esse momento. Ele agora está mais comigo do que antes”, afirma a filha Maria Tereza. Além dela, o escritor tem outros dois filhos, oito netos e três bisnetos. O telefone na casa da família não parou de tocar um só segundo na tarde que se seguiu ao falecimento e diversas pessoas manifestavam solidariedade. Ainda segundo Maria Tereza, será lançada no dia 5 de Julho, data da independência de Cabo Verde, uma obra póstuma do escritor sobre o evento histórico.
               O corpo de Luís Romano será enterrado hoje às 15h no Morada da Paz. Em entrevista ao portal Direitos Humanos na Internet (DHnet), o escritor disse que a homenagem que deixa aos brasileiros é de gratidão e, aos cabo-verdianos, de esperança. “Ao povo brasileiro, meus agradecimentos por nele ter encontrado o afeto fraternal que nunca me faltou. No Rio Grande do Norte vim encontrar uma espécie de paralelismo emocional que me gratificou por me ter arriscado a residir definitivamente neste país. Ao povo cabo-verdiano, votos de prosseguir na luta pela cidadania com dignidade e vitórias”.

Escrito por Rayanne Azevedo
Publicado no Novo Jornal

 
 Natal/RN - Brasil,