A partir de 1928, com vinte e cinco anos,
Sophia Lyra dedica-se à preparação de trabalhos
literários e históricos. Em seu livro Rosas de Neve
a escritora traça perfis de mulheres que, de uma
certa forma, tiveram influência na sua vida.
A escritora Sophia Lyra e as rosas de neve
A pesquisa e a literatura sempre me fascinaram. A partir delas e com elas construo imagens, freqüento ambientes insultados, perdidos no tempo. E assim, construo a lenda. Este fascínio concretiza-se, diariamente, na sala 12, situada no Departamento de Educação da UFRN. Juntas, as Bolsistas de iniciação cientifica e eu, buscamos esse mesmo caminho através da Base de Pesquisas Gênero e Práticas Culturais, que coordeno, vinculada ao projeto Gênero, Educação e Práticas de Literatura, aprovado pelo CNPQ.
Neste ano de 2008 fazemos aniversário. Dez anos de ininterrupto labor. Festejamos esta data através da organização de um livro, com a colaboração de todos os colegas participantes e suas pesquisas.
Temos como objetivo mostrar o papel de escritoras e escritores que contribuíram para a construção da sociedade letrada brasileira e, em especial, a norte-rio-grandense. Isabel Gondim, Chicuta Nolasco Fernandes, Zila Mamede, Palmyra Wanderley, Miriam Coeli, Lima Barreto, Graciliano Ramos, Júlia Medeiros, Anayde Beiriz e tantos outros são objetos de nossas pesquisas.
Entretanto, para esse momento, elejo a figura de Sophia de Lyra, escritora que deixa um vasto legado de memória sobra a vida intima das moças de ontem. Tive o prazer de conhecê-la. Altiva e simpática, na sua beleza invernal, do alto do seu longo viver.
Era uma manhã de abril de 2003, um sábado, quando visitei a escritora Sophia de Lyra, em seu apartamento no Bairro Flamengo no Rio de Janeiro. Um encontro rápido, não mais que quinze minutos, sob o olhar carinhoso e atento de Madre Carmen, sua Irmã caçula. Emocionada, ela falou-me do seu pai Tavares de Lyra e do seu avô Pedro Velho. Na despedida, com os olhos marejados de lágrimas, pediu-me: “olhe Natal por mim e o local em que meu avô proclamou a República”. Na ocasião, presenteou-me com um exemplar do primeiro e do segundo volume do seu livro Grandes Mulheres, autografado com a sua letra trêmula. As publicações datam de 2001 e 2003.
A escritora – filha primogênita de Augusto Tavares de Lyra e de Sophia Eugênia de Albuquerque Maranhão Tavares de Lyra – nasceu no Rio de Janeiro a 11 de novembro de 1903, no então Grande Hotel do Largo da Lapa. Seu pai era deputado federal quando ela nasceu. Portanto, tornou-se centenária em 2003.
Ganhou do pai o apelido de Picoté: o que foi o seu martírio quando jovem. “Enterneço-me quando ouço alguém chamar-me, ainda, Picoté. Conheceu-me criança, na certa”. No exemplar que adquiri, na garimpagem dos sebos, do seu livro O maior e o melhor dos Lyras (1974) tem a dedicatória da autora, datada de 1º de janeiro de 1978: “Para Clóvis Gentile, lembrança amiga e grata de Sophia A. Lyra (Picoté)”.
Por ser muito curiosa, “moleca perguntadeira”, seu pai a chamava, com carinho, de Curica que, para ele, era “uma avezinha que aprende a falar mais do que papagaio, de irresistível ânsia de comunicação, mas controlável, com amor”.
Casou-se com o professor Roberto Lyra Tavares em 1924 e teve dois filhos: uma menina Sophia Rosa, que morreu ainda criança, e Roberto Lyra Filho. Todos já morreram. Em correspondência datada de 28 de agosto de 2000, para o amigo Enélio Petrovich, Presidente o Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, a escritora, com quase noventa e sente ano, confessa que é triste ficar só e ver partiram os filhos e o companheiro de tantos anos de jornada.
Sophia Lyra teve uma acurada educação. Em 1908, aos cinco anos de idade, entrou para o Colégio Nossa Senhora de Sion, uma das mais tradicionais instituições de ensino do mundo, e diplomou-se em Humanidades em 1918. A futura escritora relembra que ao terminar o ginásio pensou em fazer arquitetura; entretanto, para poder ingressar na Faculdade, era preciso fazer um exame, no Colégio Pedro II, de toda a matéria do ginásio, chamado Exame Madureza. O Colégio em que estudava não era equiparado; todavia, seu pai, orientador intelectual da filha, discordou da idéia e foi categórico. “Estudasse o que quisesse, mas em casa. Foi sonho apenas”. Curica, “a avezinha de irresistível ânsia de comunicação, mas controlável, com amor,” obedeceu aos desígnios do genitor e a sua vida tomou outro rumo.
Segundo suas memórias, narradas em O maior e o melhor dos Lyras, seu pai, que lia francês, espanhol, italiano e latim, era “o professor em casa, o professor particular”. Ainda muito criança, a pequena Sophia já era capaz de citar dezenas de nomes ilustres, embora não alcançasse os porquês. Seu pai organizava torneios com os filhos para ver quem era capaz de “alguma proeza no campo da ciência ou da arte”. Viveu rodeada de livros e participou, muitas vezes, das penosas tarefas de conservação da biblioteca do pai. “ele e mamãe limpavam os volumes, um por um, davam-lhes banhos de querosene para imunização, separavam os antigos por traças, colavam ou refaziam dorsos. Davam-nos exemplos de amor e zelo”.
A influência de Tavares de Lyra na formação da sua filha foi marcante. Em suas memórias, a escritora fala dos longos passeios pelo Rio de Janeiro ao lado do pai, de quem recebia aulas de história: “Aqui executaram Tiradentes... Aqui foi o fico... Aqui foi o paço... Aqui foi a proclamação da República... Aqui morava Deodoro... Diante dos monumentos apresentava-nos às figuras e contava e episódios. Brincando e educando, indicava livros, aperfeiçoava o gosto pela leitura, a concentração do espírito, a sensibilidade pela beleza e harmonia. Ainda hoje leio versos, em voz alta, como a recitar. Decoro-os até decorando a alma, isto me encanta e consola”.
Como primogênita, ela foi o objeto de estréia nos cuidados, carinhos e emoções da paternidade. Quando das comemorações do centenário de nascimento do seu pai, em 1972, concentrou-se na dor das recordações, longe de festas e solenidades. Cobriu de saudades o túmulo do seu pai. Abandonou-se á prece e ao pranto. Percorreu os lugares onde moravam. Reviveu o passado e avaliou o que perdeu.
A futura escritora relembra o período em que entrou para o Colégio e tinha uma caligrafia péssima. Seu pai, versado na arte da escrita, ajudava-a nesses primeiros passos. A letra de papai era excelente. Elegante, vigorosa, bem lançada, nítida. A principio, re-copiava minhas notas de aula. Depois, apostava para ver quem fazia melhor! Assim foi que aprendeu a escrever.
A partir de 1928, com vinte e cinco anos, Sophia Lyra dedica-se a preparação de trabalhos literários e históricos. Em seu livro Rosas de Neve a escritora traça perfis de mulheres que, de uma certa forma, tiveram influência na sua vida. O livro é dedicado à memória de seu pai, “Sempre presente”, ao marido Roberto Lyra , “Companheiro de meio século de jornada, amigo inigualável, mestre de todas as horas, guia, amparo, razão de ser da minha vida” e ao filho Roberto Lyra Filho, “Certeza de perpetuidade dos ideais que norteiam nossas lutas”.
Trata-se de uma coletânea de doze artigos, nos quais Sophia Lyra configura um painel dos hábitos, tradições, maneiras de ser da sociedade brasileira. Mostra para a atualidade como eram as mulheres no começo do século XX. “Com estas mulheres de matilha, cedo ao consolo de reaproximar os vultos, que me acenam, em curvas longínquas do passado”.
A roupa, a moda, a influência da cultura francesa, os acessórios femininos e masculinos, o tipo de alimentação, as receitas culinárias, perfumes, as festas juninas, as empregadas de outrora, as professoras particulares do seu filho, a linguagem das flores, todos esses aspectos são evocados em Rosas de Neve. A partir de suas lembranças, que dizem respeito a familiares, pessoas do seu convívio, mas que juntas tecem a trama da construção deste texto, o passado torna-se presente. Um verdadeiro tratado sociológico.
A escritora começou a escrever esse livro em 1935, ainda jovem, aos trinta e dois anos, retomando-o muitos anos depois, aos setenta anos, sem pretensão literária, conforme sua própria afirmação. “Aos setenta anos quero apenas descansar, nestas sombras – como um lago onde a memória espelha cacos de lembranças”. Diria, mais tarde, Sophia Lyra.
Evidencia historias recolhidas, através de sua tia-avó (Maria Terceira Gomes Pedrosa), de como eram as refeições no Brasil Colonial, no selo da sua família nordestina. O café torrado e pilado em casa, o fogão de carvão ou de lenha, as sobremesas de domingo, descritas com detalhes, demonstraram uma memória acurada. “As religiosas trouxeram da Europa muitos dos doces mais finos aqui se faziam”. Lembra Sophia Lyra. Nos primeiros tempos do Brasil Colonial, certos conventos se mantinham, até, com fornecimento às famílias de doces, biscoitos e licores.
A escritora mostra a própria história da iluminação pública no Brasil. Nas cidades do nordeste - por volta de 1850 -, usavam-se candeias ou lamparinas de azeite; depois, lanternas e lampiões, portáteis ou fixos, sendo de dimensões maiores, quando se destinavam a ruas e caminhos. Passeia pelo Brasil dos archotes untados de resina até as mais aperfeiçoadas lâmpadas fluorescentes. Na hierarquia doméstica, era missão importante cuidar dos lampiões da casa. Na casa de Sophia, essa era tarefa de seu pai.
“No tempo em que a luz era de acetilene papai se encarregava dela pessoalmente porque julgava missão perigosa. Quando veio a luz não dormia sem desligá-la. Depois que todos se recolhiam ia, corredor afora, com sua camisola comprida. Desligava a chave da eletricidade e só então re recolhia”. São as lembranças de Sophia Lyra.
Esses detalhes mostram a agudez de observação da escritora a minudência dos detalhes, a elegância da sua escrita e, principalmente, a atualidade de seus textos. Engendram-se concepções, pontos de vista próprios daquele espaço social que se incorporam ao tempo presente desta história. Leituras que mostram diferentes momentos de suas recordações. São testemunhos da sua contribuição da sociedade letrada brasileira, e também da própria história do período que a ora se configura. Outro aspecto que esse livro mostra é ainda há muito para ser feito.
Rosas de Neve aprontam vários caminhos de pesquisa, incitam desejos de mergulhar fundo na corrente do tempo em busca de outras histórias: a exemplo da culinária no Brasil; da influencia da cultura francesa, tema ainda inesgotável; da trajetória política, intelectual e vida privada do estadista Tavares de Lyra; da história das religiosas do Rio Grande do Norte.
Conforme se sabe, todo livro é um tempo em um espaço preciso, uma seqüência ininterrupta de referencias e de reverências, uma viagem sem volta que empreendo com muito prazer. Com este prazer concluo este texto, fecho as páginas das lembranças, das rosas de neve que tem vida breve – derretem quando chega o verão -, mas que criaram vida e eternizaram-se através das vozes longínquas aqui evocadas, que caminharam comigo ao longo deste texto.
Em 24 de novembro de 2003, liguei para a casa de Sophia Lyra. Madre Carmen me fala que ela continua atenta às pessoas, mas dentro das limitações de sua idade. Vivendo dentro dos hábitos normais, no seu apartamento repleto de lembranças, ela mostra a tenacidade e a fibra de uma mulher que deixa marcas no seu longo viver. Uma centenária.
Atualmente – março de 2008 – Sophia Lyra está com 105 anos. Seu parente Anderson Tavares, fala-me que ela, na sua morada no Rio de Janeiro, ainda tem um pouco de lucidez. Pergunta pelos familiares e amigos de outrora.
Por Maria Arisnete Câmara de Morais
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