Instituto José Maciel

A dama dos ceus

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Há 70 anos, Amélia Earhart desaparecia na imensidão do Pacífico Sul. E até hoje seu sumiço inexplicado é um dos maiores mistério da história da aviação.

As outras que me perdoem, mas Amélia Earhart é que era mulher de verdade. Foi a primeira a cruzar o Atlântico num avião, a primeira a atravessar aquele oceano pilotando um avião e pioneira em fazer isso sozinha, batendo recordes consecutivos, apenas três dos noves que conquistou nos céus. Ao morrer enquanto tentava ser a primeira mulher a dar a volta ao mundo, em 1937, caiu dos ares e entrou para a história e para a cultura popular. Feminista, seria uma espiã a mando do presidente Franklin Delano Roosevelt, capturada pelos japoneses às vésperas da Segunda Guerra. Bonita, passaria por lavagem cerebral e viraria a verdadeira “Rosa de Tóquio”, que anos depois despejava propaganda do Eixo em inglês perfeito e lânguido, tentando convencer soldados norte-americanos – e o resto do mundo, basicamente – a trocar de lado no conflito. Não, não, na verdade ela caiu numa ilha deserta no Pacífico Sul, onde sobreviveu por meses tomando água de chuva, comendo peixe, tartaruga e pássaros, numa cabana improvisada. Que nada, foi resgatada pela Marinha americana, mudou de nome e viveu até outro dia numa cidadezinha de Nova Jersey, no estado vizinho a Nova York.

Tudo isso é um pouco verdade e um pouco mentira.

O fato é que, desde seu desaparecimento, Amélia virou uma das maiores obsessões do país que, se não inventou a obsessão, certamente registrou a patente já no começo do século passado. A aviadora-barra-feminista-barra-beldade-barra-autora de Best-sellers (para não falar do cargo de “editora de aviação” que ocupou na revista Cosmopolitan de 1928 a 1930, e cuja extinção a imprensa só tem a lamentar) foi tema de filmes, biografias, séries de TV, músicas, prêmios, escolas e selos. Amélia, a música que Joni Mitchell canta no seu álbum Hejira, de 1976? É ela. O parque temático que Ross (David Schwummer) diz que quer fazer no episódio 18 da nona temporada de Friends? Em homenagem a ela. Herarat, a divisão de aviação de Mittelos, do atualíssimo Lost? Um anagrama e Earhart. E espere mais homenagem: aos 70 anos de seu desaparecimento, completado no dia 2 de julho deste ano, há uma fita de biografias, estudos, revelações e até uma nova busca planejada.

O evento mais interessante suscitado pela efeméride, no entanto, talvez esteja na divulgação dos diários de um repórter da Associated Press, achados recentemente. James W. Carey, então um estudante de 23 anos, havia sido contratado pela agência de notícias para acompanhar a circunavegação aérea de Amélia e estava a bordo da lancha da Guarda Costeira Itasca, que acompanhava por mar a pedido de seu marido, o editor George Putnam, da Putnam & Sons (hoje Penguin). Seu trabalho era ficar grudado no operador de rádio da embarcação, que mantinha comunicação freqüente com a aviadora, e mandar breves despachos do progresso de Amélia para os escritórios da AP em Honolulu, no Havaí, e em San Francisco, na Califórnia. Isso não era novidade. A aviatrix, como a agência a chamava nos textos curtos, era uma das principais notícias da década, e sua aventura vinha sendo acompanhada passo a passo, porto a porto, desde que decolara de Miami, na Flórida, no dia 1º de junho. Era a segunda tentativa; a primeira havia sido abordada em Honolulu, três meses antes, e a direção oposta, oeste-leste, se devia a mudanças no tempo. O ponto de origem era mesmo: o aeroporto de Oakland, no norte da Califórnia.

“Tudo vai bem”...

Um dos textos faz referência ao seu Electra prefixo KHAQQ, uma versão do belo bimotor metalizado Lockheed L-10, customizada para Amélia, mas ainda assim muito parecida com a posterior, L-12, na qual Rick (Humprey Bogart) convence Ilsa (Ingrid Bergman) a embarcar no final de Casablanca (1942), para o bem da resistência antinazista, dos casais apaixonados e do cinema mundial. Outro despacho avisa que o avião pernoitaria em Fortaleza, no Ceará, para ser inspecionado no dia 5 de junho de 1937. Outro ainda dá conta de que Amélia deixou Natal, no Rio Grande do Norte, dois dias depois, “sob uma chuva fina”, em direção a Dacar, no Senegal, próxima etapa em seu Pinga-Pinga pelo mundo. O tempo todo ela leva o capitão-navegador Fred J. Noonan, uma das estrelas da maior companhia aérea da época, a Pan Americam World Airways, a histórica PanAm. Ao se despedir do Brasil, declara: “Tudo vai bem”.

Mas nem tudo estava bem a bordo do Electra naquele dia 2 de julho de 1937, no exato momento em que a aeronave sobrevoava as ilhas Nukumanu, última posição oficial reportada por rádio por Amélia e Noonan. Poucas horas antes os dois haviam deixado Lae, segunda maior cidade de Papua-Nova Guiné, em direção a ilha Howland, um atol desabitado no Pacífico que funciona quase como indicador do meio do caminho entre o Havaí e a Austrália, e onde a Itasca os aguardava. Às 6h15 o operador de rádio ouviu: “Faltam 200 milhas”. Era a voz inconfundível da aviadora, que não fazia questão de esconder o sotaque caipira de Atchison, no Kansas, onde havia nascido e, se tudo desse certo, planejava comemorar seu aniversário de 40 anos, que completaria dali a 22 dias. Às 7h42, sempre segundo o diário do jovem repórter, outra comunicação: “KHAQQ para Itasca. Nosso rádio deve está no ar, mas nós não conseguimos ouvi-lo. O combustível está chegando ao fim. Não conseguimos fazer contato com vocês por rádio. Estamos voando a mil pés.” Às 7h58, ela de novo: “estamos circulando, mas não conseguimos ouvi-los”. Às 8h30 Carey já rabisca a manchete no papel: “Notícia urgente do navio Itasca: cai avião de Amélia”. Às 8h55 , a voz: “Estamos na linha 157/337. Estamos indo de norte a sul e o oposto”. Ela se referia aos graus 157 (sudeste) e 337 (noroeste) da bússola.

Então, silêncio.

Aqui é Amélia Earhart Putnam.” Setenta anos depois, Elizabeth Klenck Brown ainda se lembra da voz. A aposentada que acaba de perder o marido e vive na Califórnia era então uma adolescente de 15 anos que vivia grudada no radioamador do pai, na cidade de St. Petersburg, na Flórida. Ao fazer o equivalente da década de 30 a zapear pelos canais, deu de ouvidos com a frase, chamou o pai, que achou que a filha delirava. O desaparecimento de Amélia Earhart tinha captado a atenção dos Estados Unidos de maneira inacreditável. Todos ”viam” e ”ouviam” Amélia por todo lugar.Todos queriam que ela tivesse sobrevivido. Especialmente as garotas. Se, quando crescesse, o garoto médio norte-americano dos anos 30 queria ser o aviador Charles Lindbergh, o primeiro a realizar um vôo solo de Nova York a Paris, em 1927, a bordo do Spirit of St. Louis, a irmã menor desse menino imaginário queria ser Amélia.

E não no sentido pejorativo brasileiro, da mulher submissa que não tinha a “menor vaidade” imortalizada no samba de Mário Lago. Com sua independência criticada numa sociedade ainda eminentemente machista e repressiva, com sua entrada no mundo majoritariamente masculino da aviação, com os livros e as colunas nas revistas em que escrevia, exortando as meninas a seguir seus passos e não temer nada, Amélia era uma feminista vestida com roupas de aviadora. Tanto que, por inspiração do marido, um gênio do marketing que ajudava a alimentar o ícone com quem havia se casado em 1931, era conhecida também como “Lady Lindy”, referência ao apelido que acompanharia Lindbergh até sua morte, em 1974 – “Lucky Lindy”. Amélia chamava seu casamento com GP, como editor era conhecido, de “parceria com duplo comando”, um pioneirismo para a época. Fez questão de manter seu sobrenome de solteira, outro escândalo. Horas antes de se casar, depois de muita insistência de GP, mandou-lhe uma carta em que dizia que não pretendia mantê-lo sob um “código de conduta medieval” de fidelidade nem se considerava “obrigada a agir da mesma maneira” – uma ousadia que ainda não perdeu a validade.

Erro de navegação

É dessa época, os meses que se seguiram à queda do Electra, quando a jovem Elizabeth Klenck Brown julgava ouvir o pedido de socorro de sua heroína pelo radioamador, que as teorias mais absurdas sobre a norte-americana tiveram origem. Uma das mais persistentes é a de que ela seria uma importante espiã, e sua volta ao mundo na verdade serviria para que fotos preciosas de instalações militares japonesas no Pacífico e nazistas na África fossem feitas. Daí o empenho de FDR em seu resgate – o presidente norte-americano deslocaria seis navios de guerra para a operação, incluindo o couraçado USS Colorado, que partiu de Pearl Harbor, no Havaí, e o porta-aviões USS Lexington, que saiu de San Diego, na Califórnia, no que foi considerada a mais custosa operação de busca e resgate da história do país até então, US$ 4 milhões (R$ 120 milhões em dinheiro de hoje). Na verdade, o democrata jogava para a platéia, externa e interna. Externa, pois naquele ano o país saía da Grande Depressão iniciada em 1929, só para entrar na recessão de 1937, com taxas de desemprego batendo no teto. Interna, pois “Lady Lindy” era grande amiga da mulher do presidente, Eleanor Roosevelt.

Ainda assim e ainda hoje, passados 70 anos do desaparecimento da aviadora, a única certeza sobre sua morte é que ela foi reconhecida oficialmente por um tribunal da Califórnia quase dois anos depois daquela manhã de julho de 1937. Pouco mais se sabe. A começar pelo que teria acontecido exatamente. Uma teoria derrogatória que vem ganhando adeptos nos últimos anos dá conta de que Amélia era um símbolo importante, sim, por seu pioneirismo, mas não era uma grande aviadora. A queda seu avião teria sido causada por informações erradas com que a piloto, sem experiência suficiente para uma empreitada tão ousada, teria aumentado seu navegador. Outra põe a culpa numa decisão banal como as que geralmente são tomadas nos mais sangrentos desastres aéreos e que também aqui custaria a vida dos dois. Antes de levantar vôo de Papua-Nova Guiné, Amélia e Noonan teriam decidido arrancar parte da longa antena de rádio do Electra, o que os deixou parcialmente incomunicáveis – ouviam, mas não conseguiam se fazer ouvir. Uma variação desse tese põe a culpa pela quebra parcial da antena nas péssimas condições da pista de decolagem de Lae.

Esqueleto humano

O mistério segue pelo destino dos corpos e dos destroços. A versão mais aceita dá conta de que, findo o cumbustível do Electra – no último contato com a lancha Itasca, a equipe previra que a aeronave já entrara no tanque reserva, que tinha autonomia de mais cinco horas de vôo apenas -, o avião caiu no mar, e tudo e todos foram tragados para o abismo de uma região especialmente profunda do Pacífico. Na busca bancada por FDR, os restos de um sapato feminino foram encontrados num atol desabitado próximo ao de Howland, chamado então ilha Gardner e hoje rebatizado Nikumaroro. Em 1940 um inspetor do governo britânico achou ali partes de um esqueleto humano no que parecia um acampamento improvisado abandonado. Junto dele, uma bússola destruída e mais partes de um sapato feminino. A ossada foi mandada as ilhas Fiji, e um legista local determinou então que pertenciam a um homem europeu de baixa estatura. Nova avaliação, pedida em 1998 por uma equipe bancada por uma associação internacional de busca de destroços e restos humanos de desastres aéreos, afirma que o esqueleto pertenceu muito provavelmente a uma mulher de ascendência européia com as medidas de Amélia.

A mesma organização, comandada por Ric Gillespie, autor de Finding Amélia – The True Story of the Earhart Disappearance (2006), em sua oitava expedição ao atol desde 1989, planejava voltar agora em 2007 atrás de mais evidências, quem sabe algo que permita uma leitura de DNA. Nas buscas anteriores encontraram um pedaço de metal e de janela que podem ter sido do Electra L-10, outro pedaço de um sapato feminino e uma sola de sapato masculino.

Sete décadas depois, a busca continua.

Por, Sérgio Dávila, correspondente do jornal Folha de S. Paulo em Washington.

 

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