A exemplo de sua irmã Auta, Eloy de Souza é autor de um livro profundamente pessoal, embora escrito numa linguagem vazada na fala do dia a dia, como convém a quem escreve suas memórias. Do mesmo modo que a linguagem luxuriante e sentimental de Horto, que nos legou a poetisa que Cascudo resumiu numa vida breve, se amolda perfeitamente aos objetivos de uma obra poética.
De fato, Memórias, de Eloy de Souza (cuja primeira parte teve Câmara Cascudo como redator!), acomoda um conjunto de escritos os mais diversos, às vezes díspares, mas todos significativos: retalhos de infância, eventos pinçados da vida sertaneja que o autor conheceu na casa paterna em Macaíba, retratos emotivos e emocionados dos irmãos, mas também o pitoresco das viagens ao estrangeiro, rabulices de júri e um surpreendente testemunho sobre o sentimento nos animais. E ainda capítulos da mocidade e da vida adulta, como seu ingresso na política a convite de Pedro Velho, seu primeiro discurso parlamentar, seu relacionamento com parlamentares do quilate de um Miguel Calmon, de um Euclides da Cunha, de um Barbosa Lima, de um Afrânio Peixoto e tantos outros políticos, escritores, jornalistas, e ainda fazendeiros, vaqueiros, peões com seus animais e, no entorno, a paisagem sertão, cuja “força atávica” sempre o seduziu.
Entre os vários episódios consignados nas páginas dessas Memórias, há aqueles tão especiais que poderíamos denominá-los de momentos decisivos na vida do autor, como quando ele descreve a profunda impressão que lhe causou o encontro que teve com Joaquim Nabuco numa praça do Recife. Nesse época, Eloy contava apenas doze anos de idade, o que não o impediu de se empolgar com a campanha abolicionista do grande tribuno pernambucano. Causaram tão profunda impressão na mente juvenil de Eloy os discursos que ouviu de Nabuco que confessaria, mais tarde, que veio dali “o desejo de me queimar na fogueira da política”. E isso de fato aconteceu, anos depois, em atendimento ao apelo que lhe fez outro abolicionista, o potiguar Pedro Velho, num encontro casual no Recife, quando o memorialista era ainda um jovem bacharel da Faculdade de Direito daquela cidade.
Dessa época, Eloy recolheu também um episódio anedótico, em contraponto a tantas reminiscências circunspectas: um retrato de Brás de Melo, estudante norte-rio-grandense que se notabilizou como “o maior boêmio da Faculdade de Direito do Recife do seu tempo”, segundo adverte o narrador. Acossado pelos credores, escreve Eloy, o bacharel boêmio “imaginou libertar-se dos mais impertinentes fazendo noticiar seu falecimento”. O que realmente fez, ao publicar anúncio com esse teor no “Jornal do Recife” e retirando daí, no dia posterior, dividendos hilários e gargalhadas impagáveis entre seus pândegos companheiros.
No capítulo intitulado “Viagem ao Egito e à Europa”, Eloy conta a realização de um sonho seu: conhecer a barragem de Assuã. Mas um outro sonho mais importante serviu de suporte a este: recolher subsídios sobre a forma como o povo das pirâmides estava dando cabo do flagelo da seca. De volta ao Brasil, o então deputado Eloy desenvolveu intensos estudos sobre a seca nordestina no desejo de minimizar esse flagelo da gente do “norte”. Em 1906 pronunciou memorável discurso no Parlamento; três anos depois, seria criada a Inspetoria de Obras Contra as Secas do Norte, consagrando a luta do representante norte-rio-grandense. Os estudos e pesquisas que desenvolveu sobre o tema o levaram a publicar, em 1938, “O calvário das secas”, obra que está entre as pioneiras desse gênero no país.
A segunda edição de Memórias, que saiu com a chancela do Instituto Pró-Memória de Macaíba em parceria com a Editora do Senado Federal, em 2008, marcando as comemorações dos cinquenta anos da morte de Eloy de Souza, teve organização, apresentação e notas da jornalista Rejane Cardoso e foi acrescida de prefácio e Acta Diurna de Luís da Câmara Cascudo, além de farta iconografia que assinala diferentes momentos da vida pública e da produção intelectual de Eloy de Souza. Um índice onomástico, sempre de grande utilidade em obras volumosas, encerra a reedição desse importante clássico da literatura memorialista norte-rio-grandense.
No texto de sua Acta Diurna (24.12.1959) que serve de orelhas a essa segunda edição, Cascudo prevê que a publicação das Memórias de Eloy de Souza terá “revelações e surpresas dignas de constatação”. Cremos que, como de costume, o Mestre acertou outra vez.
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