Dizem que os navios têm vida e são como os elefantes: quando velhos, caminham lentos e sem pressa para o cemitério. Li também – o recorte está perdido nesta mesa - que há um velho cemitério de navios em Bangladesh, naquelas águas calmas e cansadas do Golfo de Bengala, ou coisa assim Navios que agonizam num mar triste e sem vida, a espera de quem se interesse, por um preço qualquer, pelo ferro velho dos seus esqueletos e de suas entranhas cheias de cavernas.
Cada doido com sua mania, Senhor Redator. É sentença velha como a noite dos tempos e por isso não cansa repetir. Tenho pena dos navios que morrem. Treinei os olhos, ainda muito menino, vendo as velhas barcaças enterradas na lama do meu rio antigo como se agonizassem nos tristes ais de um abandono sem fim. Dormiam profundamente na humanidade de sua solidão, como no verso de Bandeira, depois de viverem luminosas e alegres singrando as águas do mar.
Há um verso magistral do poeta Lêdo Ivo sobre a morte dos navios. Diz assim: ‘Aqui os navios se escondem para morrer’. Foi tema, aliás, de uma crônica de José Carlos Brandão que imprimir e guardei entre as páginas da poesia de Lêdo Ivo. O cronista, invadido pela grande força do verso, sai imaginando a morte dos navios, humanizando seus corpos lambidos pelas águas da noite, como se todos, homens e navios, tivessem o mesmo e trágico destino do fundo do mar.
Aos homens, Senhor Redator, verdade se declare, o milagre da fé ainda reserva a última esperança da ressurreição. Aos navios, não. A menos que seja todo reformado, mas aà não mais ressuscitam nos seus traços. Viram fantasmas do que foram um dia e navegam nas lembranças mortas do seu próprio passado. Navio de verdade só vive uma vez. Escreve no mar a sua história e com ela desaparece. Como num longo adeus de naufrágio, absolutamente completo e eterno.
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Alguns dias, quando a alma cai nas malhas da melancolia e vem aquele sentimento mais terrÃvel da inutilidade, passeio com os olhos pelos cemitérios de navios. Não por que saiba de cor a história de alguns deles, nem procuro velhos amigos desaparecidos. Só para vê-los carregados de silêncio e tão mortos que nem ao menos suas âncoras precisaram ser lançadas, tal a mansidão de gigantes moribundos – olhos baços, corpos inertes e abandonados, esperando a morte chegar.
Por isso até hoje trago comigo, Senhor Redator, como se guardadas nos olhos, as minhas velhas barcaças agonizando na lama. Enterradas, adernadas para sempre, mastros rachando sob um sol triste, o mais triste sol da minha rua. Ainda ouço a tristÃssima canção do ranger surdo de suas cavilhas no bailado trágico das longas tábuas que se desprendiam, como se fossem bichos descarnando lentamente. E um dia lá enterrei meu sonho de fortuna para nunca mais sonhar...
Vicente Serejo
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