Instituto José Maciel

Lembrancas abstratas

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Fazia tempo, eu nem lembrava mais. É verdade que a memória, feito gavetão de cômoda de família, ainda guardava alguns traços, uns restos de olhar. Fazia tempo, repito. Afinal as lembranças são como as tardes das fotografias em porta-retratos sobre a mesa da sala. São tardes eternas.

E eu estava ali, mergulhando na cerveja um pouco da minha pobre liberdade de abandonar o regime e gritar, como um louco, abaixo os carboidratos, acima os doces. Poderia ter ficado ainda mais ou ter saído, mas acontece que a cena era absolutamente inesperada. E os acenos, os acenos, os acenos.

Fico olhando os candidatos ao namoro e vejo que o IBGE tem razão: há muito mais mulheres que homens na noite de Natal, que não é feliz, nem natalina. Que as nossas noites são mornas, lá isso eu sei. E posso assegurar, passada a visão e reconstituída a memória, que a noite de Natal não tem visões.

E nas minhas tardes eternas, quando revejo e revisito meus porta-retratos, termino quase sempre na direção do mar. Minha plena certeza de imensidão, minha cena perfeita que nunca apaga, a não ser as janelas fechadas porque adormeceram com o canto dos últimos bêbados, dos bem aventurados bêbados, segundo Dailor.

Fico assim a mexer nas coisas todas que estão nas gavetas. As fotografias, os álbuns, os recortes. Sim, os recortes de jornal. São como marcas, estações. Umas náufragas, como disse o poeta. Outras, as puras e simples estações de sonhos, onde não é proibido desejar nada, quase nada.

Todos nós temos um plano mágico, uma cidade absolutamente mágica. Como os pescadores que ouvem sereias e nunca revelam suas moradas. Como os agricultores que encontram medusas nas florestas e nos bosques, mas sempre retornam como se nada tivesse acontecido, como se a vida andasse a vagar na escuridão.

Daí a minha coleção de sonhos, as minhas pequenas lembranças. Não de muito tempo, que as emoções duram o tempo do gosto, do trago do cigarro, do uísque, do conhaque quente salvando alma dos calafrios das noites. E dos fracassos, frios fracassos que encheram poemas e transbordaram boleros imensos.

Quando venci a noite e cavalguei a madrugada, dei com as emoções numa mesa de restaurante. E lá, a o sabor de conversas entre amigos, fui surpreendido pelo piano de Waldemar Ernesto acompanhando, sem querer e sem saber por que, todas as minhas lembranças. Naquela hora, ainda pensei em distribuir estrelas e embriagar-me de canções.

Por: Vicente Serejo
 

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