Padre Monte

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O nome todo, singelo com sabor de um verso que saúda a santidade humana, era Luiz Gonzaga do Monte. Foi gênio para a definição comovida de Cascudo; um pássaro que riscasse sempre o céu de imagens inesquecíveis, para Edgard Barbosa; um sábio, mas também um santo, capaz de saber toda ciência disponível na sua época, desde a Teoria da Relatividade de Einstein até todas as lições profundas que a Medicina oferecia então, como comprova seu livro “Fundamentos Biológicos da Castidade”. Resolvia todas as equações matemáticas a ele apresentadas, com sutilezas de esteta, era um descobridor, que chegou a classificar a xelita e outros minerais importantes do Rio Grande do Norte. Discorria como um exímio astrônomo sobre nebulosas, conhecendo e falando quase quinze idiomas, além de ter sido poeta, escrevendo, com facilidade incomum, versos latinos, a mais difícil forma de poesia — e, para coroar, um orador extraordinário, ao gesticular através de mãos, longas e finas, que esboçavam no espaço vôos de um pássaro prisioneiro do canto — e era como se libertasse esse canto. No mais, humilde e bondosíssimo, a orientar almas e corações com a virtualidade do pastor que perdeu algumas ovelhas, mas por uma delas, deixa-se morrer de amor.

Tudo isso — e muito mais — conseguiu até aos 39 anos de idade, quando uma tuberculose o abateu de maneira imprópria — não se morre tão cedo sendo-se tão grande. Pequeno, magrinho, fisicamente parecido com seu irmão, Dom Nivaldo, irmão caçula, herdeiro de tantas virtudes espirituais e de inteligência, que consagraram o irmão mais velho.

Padre Monte morreu numa manhã de fevereiro de 1944, no sanatório que, nos anos 40, ficava nos últimos limites da cidade. Foi tudo isso, sem nunca ter saído de Natal, sem cursar nenhum mestrado ou doutorado, nem ter sequer freqüentado qualquer universidade. Tudo aprendeu aqui, sozinho, autodidata, porque já sabia todo o conhecimento possível de sua época, pois era condutor — é o que se pode explicar — de toda essa sabedoria impregnada, ínsita no subconsciente. O estudo apenas aflorou as pedras preciosas que jaziam de verdadeira certeza científica e humanista, no chão plano e pleno, sem ser preciso cavar subterrâneos para descobrir as fulgurações escondidas nos veios de terra, sempre misteriosa. Dádivas inesperadas de um talento extremamente superior.

Ao sentir a aproximação da Morte, entregou o relógio ao então jovem Aluísio Alves, que lhe assistiu também os últimos momentos; e pediu que todos se afastassem da janela, pois ele queria ver a totalidade da manhã luminosa e natalense, através das lentes de seus profundos olhos terrenos, capazes de fixar estrelas, ou classificar, em mínimos detalhes, todos os fenômenos que habitassem a natureza planetária. Queria luz, mais luz, o grito goetheano de quem naturalmente descendia da família espiritual dos eleitos dos deuses.

Professor de matemática do Ateneu Norte-Rio-Grandense, ensinava qualquer outra disciplina — desde a ciência especulativa e pura até à ciência aplicada; sabia de antemão esclarecer dúvidas filosóficas ou teológicas com a precisão de um escolástico da Idade Média, discípulo que era de São Tomaz de Aquino; ou aventar teorias ao largo de um Einstein — sem se exaltar, sem ferir, com a paciência que sabe perdoar, ou com o silêncio de quem reservava as madrugadas para muito rezar na capela do velho Seminário de São Pedro, onde morou até morrer, ainda tão jovem. Nesse intermeio, quem lhe chegasse com um texto de hebraico ou grego antigo, ele o traduzia como se estivesse lendo em português corrente.

Esse homem, santo e sábio, condutor de almas, ascético como São João da Cruz, passava o dia inteiro exercendo a sobrevivência como professor. À noite, estudava e rezava. Dormia naturalmente raras e poucas horas. Alimentava-se muito pouco e mal. A tuberculose rondou-lhe em cerco felino e o colheu, como se abate, com relâmpago poderoso, as grandes árvores na noite úmida e escura da floresta.

Ao sentir que a doença já começara a minar-lhe, a tocar-lhe os pulmões, convenceu-se de que tinha de se hospitalizar. Conhecedor da situação precária de sua saúde, decidiu, em silêncio, despedir-se de Natal, sua cidade afortunada, que ele exaltara em belos versos latinos. E despediu-se em programada viagem de bonde. Visitou, longamente, todos os bairros; contemplou a beleza polissilábica dos morros do Tirol, tão familiares a seus sentimentos místicos; olhou o mar de Petrópolis da balaustrada cuja beleza de paisagem fere o olhar mortal; reencontrou a Ribeira igual ao poeta Virgílio retornando à Roma, já também tomado pela doença fatal — contemplou, do seu quarto do Seminário, a última noite de lua cheia, que lhe era tão companheira e que, nos vastos terrenos do Seminário, filtrava, no chão arenoso do Tirol, arabescos de luz etérea. Cumpriu o mandato da despedida. Depois de um mês internado, morreu. Cônego Luís Wanderley, na missa de 7º dia, no clássico sermão das exéquias litúrgicas, afirmava: “No chão de Natal tombou um gigante”.

Gigante de 30 e poucos quilos, mas de altura indizível, ao carregar uma alegria contemplativa, nascida para o saber mas, principalmente, para a sabedoria do coração, a mais difícil das formas de exercer o ofício da condição humana. Desapareceu em 1944. Era fevereiro e Natal ardia no verão das cores transluminosas que ele levou, todas elas, no olhar viajante em busca de outras dimensões.
FONTE: Site padremonte.com - Sanderson Negreiros