Vicente Serejo: a saudade dos tempos áureos no Reis Magos

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Talvez, Senhor Redator, falte a mim o que não vale tanto para os outros - uma saudade inútil de quem vai perdendo a sua cidade pouco a pouco. Quem sabe, coisa de quem não tem olhos modernos.

Devo ter trazido da infância essa mania de guardar, como se tudo coubesse nas gavetas de uma velha cômoda de família. Por isso cabem tão bem nesta moldura antiga os versos tristes do poeta Manuel Bandeira, na Última Canção do Beco, tão assim: ‘Vão demolir esta casa./ Mas meu quarto vai ficar...’

Leigo de tudo, principalmente das leis patrimoniais, culpo a nossa pobreza existencial por esse bom senso que acabou vencendo, e por isso a Justiça autorizou a demolição do Hotel Reis Magos. Sou contra, mas sei que a minha ausência não fará falta ao concerto de vozes saudando seu fim.

Vivi ali, lá longe, nos anos setenta e oitenta, tudo quanto um repórter de província pode viver e lembrar. É a jurisprudência dos afetos, o único ouro que me foi dado ter como herança nesses anos todos de vida. Ali entrevistei Roberto Carlos depois de uma longa espera. Vi Waldick Soriano tomando vinho e dizendo versos de amor para uma louraça cafona que trazia com ele. Luiz Gonzaga anunciando uma fábrica de feijão verde em conserva para pacificar a sua cidade de Exu, onde duas famílias estavam em pé de guerra.Juca Chaves ironizando o Brasil e Elizeth Cardoso, a divina, de longo, minutos antes de sair para o show no palco do Teatro Alberto Maranhão, ao lado do maestro Moacir Silva com o seu sax.

Cada cidade é o cemitério das cidades que morrem. Em quantas cidades vivi em cada Natal que existiu? Não sei. A Natal do Rio Grande, do Rex e do Nordeste? Talvez. A Natal do Dia e Noite e Gasolina, seu garçom, diante daquele leopardo preto, de olhos ofuscantes, que rosnava num quadro da parede?

As cidades nascem, vivem e morrem dentro das cidades. Vão desaparecendo silenciosamente, como se uma mão invisível apagasse as cidades antigas que só atrapalham o progresso que vai chegar.

Depois, Senhor Redator, convenhamos: para que serve o ouro da saudade se nada tem a contar aos seus jovens e impacientes empreendedores do livre e indomável capital? Nada. Como tê-los, se só precisam do seu chão para neles erguer a cidade nova, feita de apartamentos modernos, com cozinhas gourmet e varanda voltada para o mar? A quem levar a jurisprudência da paisagem humana, se agora não mais interessa a ninguém e, sobretudo, se hoje não transita em julgado no mercado das vaidades?

Ali poderia ser um belo edifício de luxo só com alguns poucos e pequenos apartamentos para quem pudesse viver o privilégio de tê-los aqui, perto do mar. Ou um pequeno hotel de charme, com algumas suítes, como existe em Londres. Ora, pra quê, se o deus do mercado não aceita, e a própria Justiça acha que é mais justo arrancar dos olhos da cidade a sua ondulação sensual, seus coqueiros, e o que restou dos Reis Magos vigiando a velha solidão de um tempo imenso de vida que não serve mais?