Ainda hoje, passados mais de cem anos da sua publicação, surpreende a presteza da publicação do opúsculo À memória de Auta de Souza, com que o instituto literário mossoroense “2 de julho” homenageou a poetisa de Horto, passados pouco mais de trinta dias de seu falecimento.
A surpresa e o pequeno mistério bibliográfico que cercam a publicação ganham uma nova vez agora, com sua republicação pelo Sebo Vermelho, dessa vez, porém, com uma apresentação do jornalista e pesquisador Vicente Serejo, sob a denominação exata de “O primeiro aplauso”, onde fornece detalhes que cercam vida e morte, recepção crítica e bibliografia da nossa mais famosa poetisa.
Poemas, exortações, orações retóricas de acento parnasiano compõem esse florilégio com que os sócios do grêmio literário mossoroense exprimiram de forma pungente o que perda de Auta significou para eles.
É de supor que alguns dos textos ali enfeixados teriam sido escritos ainda em vida da poetisa por integrantes do “2 de julho”, tornando pública a profunda impressão que lhes causara a poesia de Horto. Apresentados em sessão ordinária da entidade, esses poemas teriam inspirado outros textos. A morte de Auta, porém, desencadearia o projeto da publicação.
De todo modo, ainda surpreende toda a logística que tornou possível a publicação do livro em tempo recorde, quando se leva em conta os demorados processos que cada etapa da pré-impressão demandava à época. O que só acentua a vívida admiração que cercava o nome de Auta de Souza entre os sócios do “2 de julho”.
De fato, o tom que predomina nos vários textos coletados em À memória de Auta de Souza é o tom elegíaco, que a fatalidade da morte da poetisa desperta ante os seus inconsoláveis admiradores, e que parece ter sido antevisto pela própria poetisa nos versos:
Adeus, da vida sagrados laços...
Adeus, ó lírios de meu sacrário!
A cruz no monte mostra-me os braços!
Eu vou subindo para o Calvário!
Diante de versos como esses (que transcrevemos na ortografia atual, mas que o livro Em memória de Auta apresenta num português arcaico, por se tratar de edição fac-similar, mas não ininteligível) o leitor moderno sente a ambiguidade da poetisa que canta os “laços sagrados da vida”, em flagrante contradição com o conformismo manifestado pela visão da cruz no monte (Horto) que lhe mostra os braços, clássica metáfora cristã da morte.Aos contemporâneos de Auta, porém, os versos sugerem a imagem de um espírito que parte, agora liberto, rumo ao prometido paraíso, onde finalmente se reúna aos seus iguais, românticos, líricos, igualmente puros e santos. E é inevitável que a mais de um leitor a pungência que vibra neles tenha evocado a singeleza de um dístico de Antero de Quental:
Na mão de Deus, em sua mão direita,
Descansou afinal meu coração.
Ou, como escreve o mossoroense Ferreira Campos, 34 dias da morte de Auta: “Vai cantora do Horto, ninfa da poesia entoar os hinos junto ao Senhor”.
O que sobressai em todo o livreto é a profunda convicção de que Auta de Souza deixou no Horto um repertório poético imperecível que soube traduzir na “língua certa do povo” (Bandeira) o sentir e o sonhar do seu povo. Que poeta desejaria outro destino para seus versos?
Nelson Patriota
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