Instituto José Maciel

Michel Laban entrevista Luiz Romano

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Cabo Verde encontro com escritores

PERGUNTA: Poderia falar da sua infância?

Luís Romano: Quanto a falar da minha infância, direi que meus pais afirmavam eu ter sido um menino bem dotado de inteligência, e que aprendeu a ler a escrever ainda em muita tenra idade. Que aos três anos já declamava poesias, ensaiadas por minha Mãe, e para quem improvisei, naquela época, poemas de circunstância, que ela copiava e depois lia para deleite da nossa família. Talvez tenha sido minha Mãe quem me despertou e influenciou do ponto de vista cultural, ensinando-me a declamar , e ler pausadamente e a decorar páginas inteiras de escritores românticos portugueses e franceses. A nossa grande família era tradicionalmente conhecida pelo seu pendor cultural, de que resultou uma gama famosa de juristas, Médicos, Engenheiros, etc., de modo que em nossas casas havia sempre estantes cheias de livros diversificados e de cultura geral.

PERGUNTA: Poderia precisar alguns títulos?

Luís Romano: Além das obras especializadas de Medicina, Jurisdição, Pedagogia, Política, Engenharia, etc., havia livro sobre História, Viagens, Romantismo Português até Eça de Queiroz. Paralelamente, em maior quantidade técnica e menor quantidade literária, muitas obras francesas, destacando-se Vítor Hugo e Alexandre Dumas no original. Fora isso, uma vasta quantidade de romances europeus do séc. XIX, já traduzidos em português, e que circulavam entre as famílias, onde todos os entretinham com leituras à noite. Fora da casa é que talvez se me revelou a primeira percepção estética de cultura literária, quando fui, ainda criança, para junto de um Tio-Avô, professor e pedagogo, a fim de ser “criado” e educado, com o aproveitamento equilibrado das minhas faculdades.

Meu “Tio-Avô” era um bondoso homem, grave, que parecia com um daqueles sábios da Bíblia, e que se impunha pela sua erudição e idade. Ele tinha uma educação e cultura esmeraldas, adorava ensinar-me a Língua Francesa e explicava-me racionalmente o “porquê” das coisas. Foi, durante longos anos, diretor da Escola Central da Ribeira Grande e viveu seus últimos tempos na Povoação (Santo Antão), onde residíamos, à cinco quilômetros da distantes da casa dos meus pais, na Ponta do Sol. Durante alguns anos, ele ensinou-me a descobrir maravilhas nos livros, e milagrosamente transformou-me numa pequena enciclopédia memorizada. Lembro-me bem nas tardes em que me iniciou na música e mensagem da Poesia do maior poeta-maldito cabo-verdiano ANTÔNIO JANUÁRIO LEITE, caído em desgraça e miséria, por envolvimento em distúrbios considerados “Comunistas” em 1890, no Paul de Santo Antão. Meu Tio-Avô falava-me sempre do Povo Hebreu, de quem descendia diretamente, contava-me cenas bíblias, como se fosse um patriarca.

Quanto a superposição bilingue entre nós, prosseguindo, devo esclarecer que desde o nascimento, e em casa, todos falávamos a Língua Caboverdiana. Nas escola era obrigatório o Português, sob pena de castigo corporal; quem fosse surpreendido pelo Professor,  na sala de aula, desobedecendo à ordem, já sabia quantas palmatoadas iria receber. Entretanto, estando no recreio, ou na rua, ou em família, voltávamos ao nosso idioma nativo, espontaneamente. Desse constrangimento, ficou-nos uma espécie de imposição insuportável, subjetiva, que tivemos de aceitar por razões de “Força Maior”. Como resultado: - é raríssimo o cidadão cabo-verdiano que escreve bem e naturalmente a Língua Portuguesa; e de entre nós que pretende falar portuguesmente exagera demasiado na pronúncia e torna-se artificial.

Parece-me que a superposição oficial do idioma Português em Caboverde é uma atrocidade , de circunstância provisória; ao passo que a permanência do idioma cabo-verdiano em Caboverde e pelo Mundo dos seus Emigrantes, é uma consequência natural, espontânea, gregária e eterna. Talvez venha a nascer uma língua de compromisso entre os dois países, numa simbiose luso-verdiana, mas é hipótese muito remota e que só o Tempo poderá definir, o Povo aceitar e consagrar.

PERGUNTA: Qual foi a importância que teve para si o meio geográfico (a ilha de Santo Antão) em que foi educado?

Luís Romano: Nasci na antiga Vila da Ponta do Sol, da Ilha de Santo Antão, quase à borda do mar, entre pescadores, onde meus Pais, Parentes e Avós moravam de longa data. Porta do Sol era uma comunidade mista de raízes afro-luso-judaicas, onde as pessoas se interligavam por laços de família, e o antigo falar português permanecia ao lado do característico idioma nativo. Antes de ir viver alguns anos em casa do meu “Tio-Avô”, conheci a Ribeira da Garça, antigo feudo dos Capitães-Mores, avoengos do meu pai, e onde encontrei uma grande maioria de antigas famílias europeias quase isoladas na sua pureza de viver e falar. Guardei inconscientemente “Cenários” que depois aproveitei nos meus livros. Também foi na Garça – muitos anos depois -, que testemunhei as primeiras “Impressões” de Famintos, quando era Olheiro=Vigilante, dos macabros” Trabalhos d’Estado” em Santo Antão. Com a repetição dos mesmos quadros na Ilha de São Nicolau, e o final dramático do embarque, em São Vicente, dos “Contratados” para S. Tomé, consegui material suficiente para toda a trama do livro.

Isso tudo teve um papel fundamental, desde então, na tomada da minha consciência contra a universal desqualificação humana dos necessitados.

PERGUNTA: Em que circunstâncias se interessou pela literatura?

Luís Romano: Mais tarde interessei-me pela Literatura, quando descobri a coleção completa das Mil e Uma Noites, e deslumbrei-me com D. Quixote de la Mancha. Foi um despertar de uma mola que me revelou a imensidade da criação literária; percebi que a imaginação era o palpitar de sonhos retidos nas páginas daqueles livros extraordinários que me interessavam sobremodo.

Passei a consultar a História Universal, e a biblioteca do meu Tio-Avô proporcionou-me leituras de escritores de Portugal e França, desde a época clássica ao realismo. Os escritores portugueses da minha predileção foram: Camões, Camilo Castelo Branco e Eça de Queirós. Quanto aos franceses, eu apreciava Vítor Hugo + Balzac e Zola. Naqueles tempos, como não havia escolha, eu lia tudo quanto me passava pelas mãos, e nem sabia exatamente o que fosse “crítica literária”; alguns livros me “sabiam bem” como se fossem iguarias, outros não Entretanto, lia-os todos indistintamente. Quando frequentei o Liceu é que comentávamos, com alguns colegas que fundaram a folha Certeza, as novas correntes literárias de tendência revolucionária.

Entretanto, creio que foi meu camarada e caricaturista ANTONIO AUGUSTO D’OLIVEIRA, de formação marxista e enciclopédica, que me despertou a atenção pela Crítica Literária e pela Arte-pela-Vida. Ele dissertava como um filósofo sobre o Modernismo; tal qual o Mestre ANTÓNIO AURÉLIO GONÇALVES quando me ensinava Estética em longos passeios por Mindelo; ambos me foram de grande proveito, abrindo-me outros horizontes sobre a oculta realidade cabo-verdiana de que muito poucos suspeitavam. Até que descobri JOÃO LOPES, meu fraternal mentor-cultural; durante longos anos de amizade e pesquisa sobre as gentes e terras de Caboverde, ele ensinou—me a acreditar no meu povo e prosseguir nos meus escritos, até que um dia alcançássemos a liberdade.

PERGUNTA: Falou na revista Certeza. Por que é que não participou naquele momento?

Luís Romano: Certeza – Embora eu fosse amigo pessoal e colega ligado àqueles rapazes, em verdade nunca fiz parte da folha Certeza... naquela época de 1944/45, eu vivia totalmente absorvido com o meu livro Famintos, e minhas ocupações não me permitiam desviar a atenção para qualquer outro compromisso.

PERGUNTA: Quando é que, pela primeira vez, escreveu “literatura”?

Luís Romano: Até 1940, aos 18 anos, escrevi poemas e contos realistas e irreverentes, para entreter a família e nossos amigos, versando o tema para o regionalismo local. Se não me falha a memória, compilei, experimentalmente, uma dúzia de “Contos”, num livrinho intitulado Lama, ao lado de um caderno de poemas manuscritos (sem título), que faziam as delícias das minhas irmãs e eram o escândalo do meu pai, que os considerava mal escritos e heréticos! Como vivíamos na Época do Medo, toda essa “literatice” ficou em casa, para uso privativo da família, até que se deteriorou com o tempo, e com as mudanças de casa para casa, felizmente. Depois disso, pensando melhor, passei a pesquisar e a escrever em segredo, já que a CENSURA se infiltrava por toda a parte e o Campo de Concentração do Tarrafal era uma realidade. Acima de tudo isso estava meu pai, que era empregado público.

PERGUNTA: Qual foi o seu primeiro texto publicado?

Luís Romano: O meu primeiro texto publicamente divulgado não foi divulgado na Imprensa. Escrevi uma peça de teatro. Arco-Íris, em 1945, que foi ensaiada e encenada em 1946, na qual eu denunciava a Indústria da Fome, a Injustiça Social, a Degradação Humana, em consequência das  SECAS, na ilha de Santo Antão. Conseguimos memoriza-las, de modo que, após o impacto da sua estreia, não houve provas contra nós, mas também não houve continuação do espetáculo  que teve apoio e apoteose popular. Daquela data em diante a CENSURA nunca mais se esqueceu de mim.

PERGUNTA: Onde foi representada, precisamente? Qual era o público? Foi representada só uma vez?

Luís Romano: A peça foi representada na Vila da Ponta do Sol/Ilha de Santo Antão – 1946 – no Salão Cinema “ANILBERTO”. O público era constituído pelas Autoridades Militares e Civis, os Comerciantes, a Burguesia local e o Povo de todas as classes. Os atores foram alguns estudantes do Liceu e pessoas locais.

Foi representada uma só vez. O enredo baseava-se na denúncia da “Fome” (palavra proibida), em que as personagens se confundiam com o público, e cada qual assinalava a “situação” em que vivia.

Sem nenhuma decoração, as cenas desenrolavam-se num palco despido de ornamentos, onde a movimentação e dinamismo das pessoas compensava o vazio do local, dando a impressão de se estar em plena rua.

PERGUNTA: Voltando aos seus primeiros textos publicados...

Luís Romano: Sem dúvida que meus primeiros textos publicados foram no Jornal A Província de Angola (sem data precisa) e em Cultura I – nº 05 16/17 – Luanda-Angola – (poemas) 1949. Não me lembro bem, por que foi há muito tempo, e isso a pedido do então  redator e amigo Belmiro Vieira, da ilha de S. Tiago.

PERGUNTA: De que vivia a sua família

Luís Romano: Do modesto ordenado do meu pai, funcionário administrativo, e dos proventos de uma Herdade/Regadia que pertencera aos nossos amigos.

PERGUNTA: Os seus estudos: quais foram?

Luís Romano: Fiz estudos liceais em Caboverde. Mais tarde frequentei cursos de especialização técnico-industrial no estrangeiro.

Essencialmente, continuo sendo aqui que sempre fui: um autodidata, que vive estudando livremente as matérias da sua escolha e necessidade.

PERGUNTA: Poderia evocar as suas experiências de trabalho em Cabo Verde?

Luís Romano: Em verdade, as minhas experiências de trabalho em Cabo Verde foram as de um “Free-Lancer”: quando calhasse! Pela rapidez com que aprendia as coisas é que conseguia empregos eventuais, durante as férias. No ambiente tumultuado de trabalhos de Salvação Pública para Famintos, é que colhi material para o meu primeiro livro, que em Santo Antão, quer em São Nicolau. E do escritório para os locais de serviço foi um passo que transpus com facilidade. A cena que eu vi com os próprios olhos e testemunhei pessoalmente em dolorosos anos de “crise” ficaram registradas nesse Romance do povo cabo-verdiano, para espanto de muita gente. E arranjei sempre empregos livres, que nunca impediram meus estudos e leituras à noite, e compilar apontamentos para publicar um dia, quando saísse da Caboverde.

PERGUNTA: Em que consistia o trabalho, quando se ocupava dos “Famintos”?

Luís Romano: Meu trabalho, ao tempo dos “Famintos” em Santo Antão e São Nicolau, foi desempenhado na condição de “Olheiro” (“Piqueur”), nos sinistros “Caminhos d’Estado” onde morreu muita gente.

PERGUNTA: Quais são os seus projetos no domínio cultural?

Luís Romano: Os meus projetos no domínio cultural se resumem na esperança de publicação das seguintes obras, sobre Cabo Verde, e que aguardam um eventual editor:

ULI’ ME – aspectos literários cabo-verdianos – 1980
KABVERD – mistura temática cabo-verdiana – 1981
KASHUPA – mistura cronológica cabo-verdiana – 1982
ILHA – estórias caboverdianas (Emigração) – 1982
CEM ANOS D LITERATURA CABOVERDIANA 1880/1980 – 1982

Em preparação:
LITEROVERDIANO – esboço histórico literário
Etnoverdianografia – aspectos folclóricos e etnográficos de Caboverde

FONTE: Jornal ARTILETRA 
 
 Natal/RN - Brasil,