Instituto José Maciel

E veio a saudade...

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Era triste, Senhor Redator, muito triste, de uma tristeza sem fim, o grito seco das matracas cortando o silêncio quieto das tardes na Macau da minha infância. Os sinos calados da matris, sufocados de dor, e os santos cobertos de roxo anunciando a morte do Cristo a caminhar aberto em chagas e sangrando nos ombros do seu povo. A procissão se arrastava pelas ruas, guiada pelo olhar do Monsenhor Honório, o santo da cidade. E era tudo tão verdadeiro que ninguém ousava duvidar.

Fui menino vendo a minha mãe rezando nas trindades do anoitecer, seus lábios mumurando baixinho. Meu avô e meu pai de fita azul e medalhas marianas em fitas azuis com seus cajados que marcavam o chão, anunciando o milagre da ressurreição. Era bonito o povo de Deus caminhando, tangido pela fé dos tempos velhos. A vida ainda era um mistério que se humanizava nas orações e renascia das águas daquele rio manso, entre gamboas, com o perdão para os pecados do mundo.

O que fizemos daquele amor tão puro que aprendemos tão cedo se hoje não sabemos amar a Deus, como nos tempos de menino? E aquela dor, no mais íntimo da alma, o que fizemos do mistério da fé que um dia proclamamos? Fizemos de pecados a vida que era sublime? Resta, este homem, cansado de tudo, carregado dos seus pobresinfortúnios, caído no abismo das aventuras inúteis que em vão colecionou esses anos todos, como se viver fosse a terrível agitação, feroz e sem finalidade, de que fala o poeta?

A quem entregarei os fardos das minhas dúvidas e o fel dos meus medos se ainda ouço o grito magro das matracas anunciando a dor do fim? E a morte, essa fera que espera e espreita nas esquinas, a quem enganarei a cada estação, se o nosso encontra um dia será inevitável? Se cada um dia nós será um morto? Se um dia a dor também calou o riso do meu pai que sonhei ser eterno para livrar seu filho de todo mal? A quem deixarei as lágrimas que guardei, inventando a coragem que nunca tive?

Eis o mistério da vida, Senhor Redator. Outros virão bêbados e enlutados, como no triste soneto de Lêdo Ivo a Emengarda. Quanto a mim, e meus pecados, venho lúcido. Venho trazê-los na dolorosa cerimônia de um adeus que a mim coube guardar, eu que não tive um lenço branco para o último aceno naquela hora da despedida. Quando o adeus se desfez em gestos de silêncio repetidos, eu era o homem mais triste dos homenes tristes do mundo, semeando no silêncio morto um tempo imenso de vida.

Por isso, todos os anos, é como se fosse inevitável acompanhar a procissão, numa metáfora do tempo que passou. Ouço o grito triste das matracas cortando o silêncio das tardes da infância. Lá vão meu avô e meu pai, caminhando como se seguissem, como se seguissem os passos da morte. Sei que nada será como antes. Os seus olhos descansam e as suas mãos repousam como se apenas dormissem. Quem sabe, num dia assim, livre da tristeza, ele também virá para o grande reencontro.
 
VICENTE SEREJO - O Jornal de Hoje 
 
 Natal/RN - Brasil,