Instituto José Maciel

Rossini Perez: Trajetória 1954-1981

E-mail Imprimir PDF

Rossini Perez 

O Coração da Matéria

De palavras, cores, música e formas – vivemos todos os que fomos, por força desconhecida, jogados na busca de uma linguagem que justifique a nossa existência. Em cada elemento desse mergulho no ser, há que haver um exercício permanente de domínio e, ao mesmo tempo, de sujeição à técnica das feituras que nos escolheram. Inventar palavras, criar distribuir cores, entender o silencio dos instrumentos e ganhar poder sobre as massas de matéria e suas formas – elevam homens como Guimarães Rosa, Portinari, Villa-Lobos e Rossini Perez – respectivamente na palavra, na cor, na música e na forma – ao plano de intérpretes de todos nós, nessa luta pela descoberta de identidade de um país e de um povo.
De massas e formas, de linhas e relevos, na difícil arte da gravura, vem Rossini Perez, há mais de quarenta anos, lutando contra o anjo que, ao nos instigar, como que nos protege na conquista de uma língua nova e no gravar aspectos desconhecidos da realidade. Suas gravuras ingressam nas linhas ocultas dos objetos e das paisagens, essas mesmas linhas que existem em todas as tentativas de expressão – poemas ou murais, melodias ou traços – com conhecimento exato do rastro que atravessa um campo fixo e dos nacos da superfície susceptível de receber sinais.
O esforço permanente de captar significado inteiriço insufla uma esperada/inesperada força nas massas que ele tira aparentemente do nada, mas que vêm do mais fundo de si mesmo. Com isto, eleva-se a gravura de Rossini Perez a um nível de linguagem definitiva no criar suas linhas, massas e formas, em separação e afastamento, mais também na montagem de fendas e regos, para realizar este milagre: uma gravura, quase sempre abstrata, que apresenta um retrato de nossa terra e de nossa gente. É que Rossini deseja atingir o coração da matéria. É lá que realiza seu encontro com o mistério das coisas, que ele desvenda e ilumina.
Foi sintomático o haver Rossini Perez criado, no Senegal, uma escola de gravura. Sua presença em Dacar mostrou o nível a que havia chegado á gravura brasileira, que influi e vem ainda influindo, na disseminação da arte do gravador na África Ocidental.
O negro profundo de muitos de seus trabalhos é, de vez em quando, substituído por traços rápidos a que a prensa empresa determinado tom de leveza. Falei em “coração da matéria”, e é nessa penetração mais funda e forte no intimo dos objetos que vejo o vigor de Rossini Perez como gravador.
A Academia Brasileira de Letras, no seu projeto de realçar diversos aspectos da criação artística em nossa terra, escolheu as gravuras de Rossini Perez para uma exposição, na sua Galeria Manuel Bandeira, que mostre de que maneira o coração das coisas e das formas é atingindo pelas mãos de um artista.

1931 / 1938

Ente Macaíba (RN) e Fortaleza (CE)
Saúde frágil, magreza, febres diárias. Isolamento pela doença, reclusão. As saídas: consultórios médicos. Previsão de vida até os 15 anos. Proibições: banhos de mar, esforço físico, gelados, serenos, colégio. Confinado no quarto. Desenhos geométricos de treliça vazada do forro. Bandeiras das portas em arabescos – cheios e vazios. Contando ripas e flores para adormecer. Calafrios. Afagado pelos relevos do edredom de cetim. Entrando no guarda-roupa à chegada das visitas.
Diversões: folhear livros revistas – eu sei tudo, O Cruzeiro, Cena-Muda. Lançamento de uma super produção histórica MGM. Armando papel-de-seda uma saia balão para a Irmã interpretar Maria Antonieta. Magnífica sensação de volume! Sensualidade de Dorothy Lamour em “sarong” , Jean Harlow em prata. Caleidoscópios nas coreografias de Busby Berkeley nos musicais americanos. Os desenhos voluptuosos de Alex Raymond em Revista Para Ti – com reproduções de obras fascinantes (Zuloaga, Velásquez, El Greco, Goya). Procurando copiá-las sobre tampas de caixa de charuto Suerdieck.
Um livro grande, preto, com imagens aterrorizantes (ilustrações de Gustave Doré para A Divina Comédia).
Construindo maquetes em barro, palitos, papelão, miolo de pão: a esfinge de Gizeh, a esfera e a pirâmide do pavilhão da Feira Mundial de Nova Iorque. O Hindenburg , o palácio Monroe. A vizinha artista fundia em gesso cajus, pinhas, folhas de mamoeiro, moldando-as na areia escaldante do quintal e repetindo o que via para a decoração do quarto.
Minha mãe na maquina de costura confeccionava suas calças-cintas, ligas, corpinhos, bobinava fios matizados. Meadas de linhas coloridas, ovo de cerzir.

1939 / 1944

Transferência da família para o Rio de Janeiro. A paisagem carioca, o perfil dos morros. O Cristo do Corcovado. Verde e água nas encostas, nos parques, praças. Reencontro com o Palácio Monroe. Gigantismo da metrópole, arquitetura vertical: A Noite, a Mesbla, Cinelândia. Metrópoles em reprise. Elevadores, escadas rolantes, passagens subterrâneas.
Anúncios a neon. Outros cinemas. Fachadas monumentais. Metro, Rex, Olinda, Primor. São Luiz: uma estréia – Do mundo nada se leva.
Carnaval. Rio de Janeiro pagão. Irmãs Pagãs, Irmãs Baptista, lindas, Linda! Irmãs Miranda. Cassinos: J’attendrai ... Icaraí, Atlântico, da Urca. A-E-I-O-UUUUUURRRRRRCA!

1945 / 1950

Rio Festeja fim da Segunda Guerra Mundial.
O tio, pintor aos domingos, avança-me rudimentos de pintura através de recantos bucólicos. Luiz Almeida Jr. (não o grande homônimo) dá sequência à captação da paisagem com paleta acadêmica. Quinze anos. Não realizadas as previsões fatais. Comoção, euforia. Colégio. Entre estudos, paisagens aos domingos, maquetes. Poder mostrar ao publico habilidades manuais. Fantasias de carnaval, a própria cabeça, o suporte dessas construções. Exibição, afirmação. Associação Brasileira de Desenho. Modelo vivo, natureza-morta. Addo Malagolli alterando a paleta acadêmica.
Apresentação espetacular do gigantesco Tiradentes, de Porttinari. Os planos em cores puras cortando deformações em visão teatral. Euforia nos meios intelectuais, na impressa, em mim. 

1951 / 1954

1° Bienal de São Paulo. Perplexidade e incompreensão na leitura das obras de vanguarda expostas aqui pela primeira vez. De novo, euforia. Uma adesão às novas correntes? Revisão das obras. Jogando fora a grande maioria delas.
Cursos no Museu de Arte Moderna – RJ. Envio ao Salão Nacional de Arte Moderna. Apresentações em mostras coletivas, salões.
2° Bienal de São Paulo. Uma descoberta: Edvard Munch – no seu mundo expressionista, uma identificação. Tão poucos meios (xilogravura) e resultados surpreendentes. Incursão no linóleo, na xilogravura. Exigência de habilidade manual, limitação de cores. Agora, temas e organização arquitetônica conduzida pela natureza do corte das matrizes.

1955 / 1960

No linóleo passa à gravura em metal. Primeiras individuais no Rio e em São Paulo. Participação em coletivas e salões no Brasil (diversos prêmios). Professor das técnicas de gravura em metal no ateliê recém-inaugurado do MAM–Rio. Participando de bienais internacionais: Toquio, México, Carrara (grande prêmio), São Paulo ( prêmio MAM-Rio). Viagens a capitais da América do Sul: exposições individuais. Implantação de uma oficina de gravura em La Paz (Bolívia).

1961 / 1972

Bolsista do governo dos países Baixos na Rijksakademie de Amsterdã (processos da litografia). Residência em Paris, bairro da Bastilha, de 1961 a 1972. Participação em salões e coletivas em paris diversos centros europeus. Viagens pelo continente europeu, índia, Estados Unidos, onde realiza individuais. Outras bienais: Déli, Cracóvia, Ljubliana, Bradford, Veneza, Florença, Paris, Havana, (grande prêmio). Edições l’Oeuvre Gravée, Berna, Suíça. Tiragem nos ateliês J.J. Rigal e Le Blanc, Paris.

1972 / 1980

Retorna ao Brasil em 1972. Reencontro com outro Rio de Janeiro: desfigurado e empobrecido. Indignação. Retorna antigo hábito de fotografar. Agora documentando o processo de destruição do patrimônio histórico da cidade. Palácios (Monroe), cinemas (São Luiz), entre outros. Do mundo tudo se perde?
Domicilio em Brasília. Reabre a oficina de gravura da universidade (UnB), e cria uma outra no Centro de Criatividade da Fundação Cultural do Distrito Federal. Convidado a dar cursos de gravura em países da África. Implanta a primeira oficina desse gênero em Dacar, Senegal. Realização de mostras com alunos africanos na mesma capital, em Abdijan e Bamako. Cavaleiro da Ordem do Rio Branco.

1981 / 1989

Domicilio no Rio de Janeiro. Pausa na gravura, priorizando agora o desenho, colagens, relevos em madeira. Retorno frustrante ao ateliê do MAM/Rio, reaberto em 1983, porém encerrado seus cursos dois anos depois. Retomada das exposições no Brasil. Mostragem de uma “trajetória de 1945-1985”, no Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro. 

1990 / 1999

No estúdio no bairro da Saúde, entre desenhos, montagens, reprografias, serigrafias. Domingos dedicados a fotografar. Edição da obra Palafitas, pelo Núcleo Amigos da Gravura da Fundação Museus Castro Maya. Individual na Chácara do Céu. Primeiras exposições fotográficas: PUC/Rio, Espaço Cultural da Light, SESC (Petrópolis e Copacabana), Casa Thomas Jefferson, Brasília. Seminário “Gravadores Latino-americanos” e individuais na cidade do México. Grande número de obras em museus e coleções particulares, no Brasil e no exterior.

“Trajetória 1954-1981”. Galeria Manuel Bandeira, Academia Brasileira de Letras, Participando da Mostra Rio Gravura. Rossini Perez – Rio, 1999.

 
 Natal/RN - Brasil,