Instituto José Maciel

O tempo que nao passou

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Ivan Maciel de Andrade
Advogado    

 

A casa do meu avô era em Macaíba, numa das ruas centrais da cidade. Uma construção simples, sem luxo ou requinte. Mas com dependências amplas, ventiladas, confortáveis. Quando tomei consciência do mundo, meus avós, Olímpio e Ellem, viviam sozinhos, com um filho adotivo, Pedro e uma empregada já idosa, “sinhá” Joana. A casa tinha seis quartos, dois banheiros e duas salas. Numa delas, a da frente, meu avô assistia aos noticiários e programas musicais num rádio em que ele sintonizava, pacientemente, estações do Brasil e do exterior. Lembro-me de sua grande admiração pelo cantor Gastão Formenti. A partir daí, pelos anos afora, eu procuraria adquirir gravações desse cantor, em homenagem ao gosto musical de meu avô. E também para ressuscitar aquelas ocasiões cheias de terna cumplicidade em que eu ouvia, em respeitoso silêncio, ao lado de meu avô, Gastão Formenti cantar “Na Serra da Mantiqueira” e “Zíngara” (que se fixaram até hoje na minha memória).

Havia, ainda, na parte de trás da casa, uma espécie de curral, para onde um vaqueiro da fazenda de meu avô trazia diariamente – a fazenda era próxima de Macaíba – uma vaca recém-parida para ser ordenhada por meu avô. Esse ritual garantia um leite de primeira qualidade e constituía uma diversão da qual o meu avô – apaixonado pela vida do campo – nunca abriu mão enquanto teve saúde. Na sala de refeições, havia uma mesa enorme (não posso garantir até que ponto as dimensões da mesa não resultavam da hipertrofiada capacidade de avaliação de um menino diante de um ambiente que o extasiava). Apesar do tamanho da mesa, ela ficava cheia, abarrotada de pratos com os mais diferentes tipos de comida nas três refeições do dia. Havia uma fartura e diversidade que me deslumbravam e excitavam fortemente o meu apetite (voltava de minhas férias sempre com muitos quilos a mais). Comida sertaneja, sim, mas muito bem preparada – com requintes de criatividade – por “sinhá” Joana, sob a supervisão de minha avó. As frutas e verduras, numa incrível e paradisíaca variedade e abundância, vinham da fazenda de meu avô. Por isso, o passadio se tornava módico, para não dizer bastante barato, apesar de sua excelente, deliciosa e, sobretudo, inesquecível qualidade.

Antes do almoço e do jantar, meu avô fazia um agradecimento, em forma de prece, pelo privilégio de dispormos de refeições fartas e de boa qualidade, enquanto muitas famílias sofriam privações humilhantes e injustas. Ele tinha uma voz bonita e dizia as palavras pausadamente, com naturalidade, mas com transparente e tocante convicção. Nesses momentos, os que estavam à mesa permaneciam em silêncio e geralmente de cabeça baixa. Minha mãe memorizou essa prece e, a meu pedido, transcreveu-a com sua letra redonda e tão legível quanto um texto impresso. Preservei essa oração, elaborada por um homem de pouca escolaridade, porém de muitas leituras avulsas, com que satisfazia sua imensa curiosidade de conhecer. A prece de meu avô: “Agradecemos, Senhor, a dádiva de Vossa infinita bondade ao nos ofertar o alimento para o corpo, mas não esquecemos jamais que é em Vós que devemos buscar o alimento espiritual da fé, da caridade e do amor ao próximo. Amém.”

 

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