Instituto José Maciel

Ariano Suassuna na Fazenda Guapore

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Na gaveta dos guardados encontro uma coluna que publiquei na TN de 17 de agosto de 2007 com o título de “Ariano no Guaporé”. Dava conta da passagem de Ariano Suassuna pela fazenda de Nélio Dias quando da realização do Grito da Seca, idos de 1998. Naquele tempo Nélio ainda não era deputado federal, mas exercia grande liderança na agropecuária do Rio Grande do Norte que o levaria a atividade político-partidária. O Grito da Seca, ideia sua, aconteceu na cidade de Lajes. Ariano foi um dos palestrantes. A história é contada assim:

“Está fazendo um mês da morte de Nélio Dias. Amanhã, na matriz de Santa Terezinha, no Tirol, será celebrada missa de trigésimo dia. Esta semana mexendo em meus papeis que vão resistindo ao tempo, encontrei  algumas anotações sobre o Grito da Seca que  Nélio idealizou e concretizou num grande evento realizado em 1998 na cidade de Lajes, que é o município onde menos chove em nosso Estado. O propósito era chamar a atenção das autoridades, das lideranças políticas, dos homens do governo para os grandes  problemas que o homem do campo – agricultores e criadores – estava sofrendo.

A questão secular do semiárido nordestino, a falta de chuva, a seca, a  inexistência de infraestrutura, a ausência de uma política de desenvolvimento econômico e social, a ficção do crédito rural. Todas essas questões estavam no balaio. Nélio juntou gente de todas as partes e de todas as patentes. Trouxe políticos, senadores e deputados, executivos do Governo, empresários, dirigentes de bancos oficiais, pesquisadores universitários, técnicos de todos os níveis e colocou-os num ginásio de esportes lotado e que se transformou num plenário para o debate amplo e democrático.

Na plateia via-se do mais simples e rude trabalhador rural - o criador de meia dúzia de cabras -, do pequeno proprietário ao fazendeiro médio e grande. Gente de outras atividades (pequenos comerciantes, por exemplo) também. Ouviram-se palestras exposições de governantes, políticos, empresários, técnicos. Entre os palestrantes estava o escritor Ariano Suassuna, sertanejo, filho de sertanejos, também criador de bodes e de cabras nas terras secas dos carris velhos da Paraíba. Ele, profundo conhecer dos problemas do sertão e do seu povo, pois este sertão, que é o seu mundo, está muito bem retratado na sua grande obra literária. Ariano foi hóspede da Fazenda Guaporé, de Nélio, plantada ao pé do Cabugi. Pois bem, nestes meus papéis encontrei, uma cópia de uma carta de Ariano para  Nélio, escrita na casa grande de Guaporé, chão de Angicos.”

A Carta
“Fazenda Guaporé, 14.VI.98

Meu caro Nélio:

Vou fazer tudo para me despedir pessoalmente de você. Mas caso talvez não consiga, não quero sair sem deixar um testemunho do mais profundo agradecimento pela hospitalidade que você da Nadja dispensaram a minha e a Zélia.

Outra coisa que me tocou profundamente foi a homenagem que você me prestou. Já recebi várias outras em minha vida. Mas quero lhe dizer, com a maior sinceridade, que nenhuma me atingiu tanto. Fiquei tão emocionado, que quase me desmoralizo: tive que disfarçar e sair imediatamente do local da placa, o que fiz para  não chorar.

E por que, isso? Porque senti que você tinha consideração por mim e, na sua generosidade, dava à minha participação no Grito da Seca uma importância muito acima do real.

Peço que você transmita a Woden, Dácio, Carla e Chico Daniel meu agradecimento pelo belo espetáculo e pelas fecundas conversas que me proporcionaram. E, como se fosse pouco, tomei conhecimento, hoje, pela manhã, da placa que você apôs na fazenda que é a sua menina dos olhos, como eu fosse um rei, um profeta ou um imperador.

O melhor, porém, é que (tenho certeza) a ideia da placa não saiu da sua lúcida cabeça, mas sim do generoso coração. Pergunte a Manelito, que ele sabe que não falo assim senão quando estou, como ele diz, “escanchado no cavalo da verdade”.

Com um grande abraço deste, que de hoje em diante, é seu verdadeiro amigo.

Ariano Suassuna.”


A Placa
Mais tarde, Nélio colocaria esta carta numa moldura ao lado da placa, cujos dizeres são: “A Fazenda Guaporé hospedou o escritor Ariano Suassuna em 13/06/98, que veio participar do Grito da Seca”.

Chico Daniel que Ariano se refere é o grande mamulengueiro norte-rio-grandense, falecido ano passado. Naquele tempo eu andava pela Fundação José Augusto e quis homenagear Ariano com o que de  melhor tinha a cultura popular do nosso Estado. Mesmo sabendo que ele já tinha visto na vida centenas e centenas de espetáculos dessa natureza por este mundo afora, e que certamente preferiria  ficar na prosa dos acolhedores alpendres de Guaporé, após um dia puxado de tarefas no Grito da Seca, arrisquei tirá-lo do descanso merecido. Depois de combinar com Nélio, acertei com Dácio Galvão levar Chico Daniel ao Guaporé.

Terminado o jantar – Ariano tomou uma sopinha e comeu pouca coisa, o que é do seu feitio, enquanto nós outros comemos muito da mesa farta e de excelente sabor carinhosamente preparada por Nadja – fomos todos para os alpendres. Havia uma porção de gente. Até aí Ariano não sabia nada de Chico Daniel e nem que ele iria apresentar uma função com o seu João Redondo. Chico ficou num canto do alpendre (em forma de L) armando sua empanada e arrumando os bonecos. Quando tudo ficou pronto, anunciei a apresentação. E lá se foi Ariano com Zélia, também artista plástica, para um canto do alpendre e certamente remoendo: “Lá vou eu cumprir a minha sina e ver mais um joão redondo”. Logo após as primeiras falas de Chico Daniel, Ariano percebeu que estava diante de um grande artista. O ilustre espectador, dos maiores dramaturgos do país, ria, gargalhava, aplaudia, se deliciava com a arte de Chico Daniel.

Foi uma noite inesquecível. Findo a apresentação, Ariano puxou conversa com Chico Daniel. Fez inúmeras perguntas, elogiou suja arte e seu ofício, a prosa entrando pela noite fresca, meio friorenta de junho, ao pé do Cabugi. Numa mesa ao lado, o pintor Dantas  Suassuna, filho de Ariano e de Zélia, dava enormes gargalhadas, dividindo seu encantamento com o primo Daniel, filho de Manelito, e Rogério, meu filho. Ah, não esqueço nunca! Tempos depois, numa Aula Magna na UFRN, Ariano falaria sobre Chico Daniel, dizendo que ele era um dos maiores mamulengueiros do Brasil.

Woden Madruga
 
 Natal/RN - Brasil,